Até já os desgraçados em estado de coma nos hospitais se devem ter apercebido do invejoso que eu sou, tão gritante e desarvorada a minha inveja clama e fermenta.
Mas, para falar com franqueza, eu não sou apenas invejoso: sou duplamente invejoso! Isso mesmo, tal-e-qualmente. Dilaceram-me, afligem-me e atormentam-me duas espécies diversas e concorrentes de inveja: a pequena e a grande. Mas, salvaguarde-se, uma não tem nada que ver com a outra.
Porque há os que vivem a expensas do erário público – e são muitos, imensos, ávidos, ubíquos -, mas também existem aqueles que vivem à mama-e-pala do funerário público – e não são poucos, nem menos gulosos ou infestantes. São os que vivem do cemitério das consciências, da sepultura do juízo, do caixão do espírito. São os vermes que tomam de assalto carcaças e mioleiras em decomposição, que se locupletam de finados e putrefacções, que tiram a barriga de misérias da indigência e da miséria mental em que o país –e o mundo -, decoctam em podre lento.
É sobre esses que se debruça a minha pequena inveja, ínfima mas virulenta, geralmente em forma de bengala ou escarro. Não obstante, gostava de ser capaz de tamanho repasto, de ter acesso a tão sossegado festim, de colibrizar com tanta delicadeza pelas morgues e necrotérios, extraindo néctares e ambrósias tão fáceis. Um livre-trânsito como o deles, para tais bufetes, o jeito que não me dava! Um lugarzinho à mesa - melhor dizendo, à sepultura – o gratificante que não seria!... Pagarem-me a mediocridade, a ninharia, a frioleira a preço de ouro! Ser um príncipe da inânias, um barão das patacoadas, um cardeal-rei das parlapatices! Em suma, um todo inteiro e completo luze-cu da sabedoria investido e arvorado em farol das humanidades!
Por um microcagagésimo de segundo que seja, como não roer-me de inveja - uma invejazinha pequenina e torpe, daquelas instantâneas e efervescentes - dum vidão destes?... Uma tão pegada mordomia... Um relambório catita de criar papo e conta aberta na manicure!...
Eu, porém, parvalhão de merda, por mais que tente, não consigo. Há sempre uma réstia de escrúpulos, uma repugnância natural, quiçá congénita, quase sempre empecilhante. Anacrónica como o diabo. Obsoleta até dizer chega. Um cabrão dum nariz empinado e sensível a torpedear-me. Uma puta duma coluna pouco elástica a obstruir-me. O caralho duma mioleira pouco prática a desqualificar-me. Nem passo dos psico-técnicos!...
No resto do tempo, quase todo o dia, entrego-me à outra inveja - a grande, a gigantesca a descomunal inveja que me há-de consumir até à sepultura. Mesmo sabendo-a inútil, insensata, absurda. Contraditória das minhas próprias teses (puta que as pariu, que valem tanto como meio tostão furado!) Mas é mais forte que eu. Flagela-me e desentranha-me. Tenho inveja, sim senhor! Estoiro de inveja de Homero, de Sófocles, de Aristóteles, de Swift, de Mozart, de Bach, de Rabelais, de Cervantes e de todos esses poucos em quem vale a pena gastar toda a inveja deste mundo.
E se rebentar, como o batráquio que sonhava ascender a mamífero, pois que seja por loucura, aspirando às estrelas. E nunca, mas nunca por bulimia escatófaga, à candeia de pirilampos, cevado e empapuçado de tanto depenicar na bosta.
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