domingo, maio 18, 2008

O Rasto e a Rota - 2. A Sociocracia vaticinada



«Sob a santa reacção da revolução feminina, a revolução proletária purificar-se-á espontaneamente das disposições subversivas que até aqui a têm neutralizado.»
- Auguste Comte, "Catecismo positivista"



Segundo Comte, a sociocracia é um processo cumulativo que resulta de quatro revoluções consecutivas: a "revolução filosófica" (do modernismo iluminista), a "revolução burguesa, a "revolução proletária" e a "revolução feminina". A burguesa é fruto da filosófica; a feminina completa a proletária.
Quanto à "ordem normal" dessa mesma sociocracia, é composta de quatro classes fundamentais: afectiva, especulativa, patrícia e plebeia. Que correspondem, respectivamente, às mulheres, aos sacerdotes, aos barões económicos e aos proletários. Neste projecto acelerado de paraíso terreal, a providência divina cede lugar à providência humana, da mesma forma que Deus se vê substituído pelo Grande Ser Humanidade. Para que este Grande Ser se conserve e aperfeiçoe, é fulcral uma convergência entre a "providência moral" das mulheres, a "providência intelectual" do sacerdócio, a "providência material" do patriciado e o "providência geral" do proletariado. É precisamente ao resultado desta quadrúpla convergência que Comte chama de "providência humana". Significa isto que é missão permanente e exclusiva da "providência humana" burilar e realizar o Grande Ser Humanidade.
Por outro lado, as quatro classes funcionam segundo o princípio da parelha (deveras apropriado, diga-se), congregando-se operativamente na forma de dois pares simpáticos e indissociáveis: as mulheres com os sacerdotes; os patrícios com os plebeus.
Entretanto, como sempre convém a estas engenhoquices sociais, no âmago da sociocracia vela e patrulha a classe sacerdotal. Bastião da pureza, dos fundamentos e da supervisão cultural, divide-se, por sua vez, em três subclasses: os aspirantes (admitidos aos 28 anos); os vigários ou suplentes (admitidos aos 35); e os padres propriamente ditos (elegíveis aos 42). Apenas as duas últimas categorias pertencem ao "poder espiritual". Toda esta boa gente ministra e adeja a partir de presbitérios. Cada presbitério é tripulado por três vigários e sete padres. No total do Ocidente, Comte estipula o número ideal de dois mil, ou seja, o "equivalente a um funcionário espiritual por cada seis mil habitantes". Ao grande padre da Humanidade (autêntico sumo-sacerdote positivista de que Comte constitui o espécime primordial) compete o poder supremo (espiritual, entenda-se). Para que a burocracia não estremeça, estão previstos salários bem definidos: o grande Padre ganha cinco vezes mais que os padres mais pequenos e o dobro dos chamados superiores nacionais, que pastoreiam as quatro classes de Igrejas positivistas -italiana, espanhola, germânica e britânica.
Sob este fagueiro e preclaro regime, o conceito de nação, tal qual tradicionalmente é entendido, deixa de ter cabimento. Uma vez a ordem positiva devidamente implantada, os grandes estados decompor-se-ão espontaneamente em pequenos estados cuja demografia ideal orçará num total aproximado de três milhões de habitantes, correspondendo a uma densidade de sessenta por quilómetro quadrado. A República ocidental regenerada, segundo os cálculos comteanos, abrigará, assim, cerca de sessenta mini-repúblicas independentes - numa Europa convertida e fragmentada numa pluralidade homogenizada de Bélgicas e Toscânias em série. Engenheiros e zeladores desta federação serão os padres positivistas. De todo este clero positivo e benfazejo dependerá a universalidade da moeda e dos padrões métricos, bem como a educação comum, os costumes uniformes e um programa de festividades único. Assim se promoverão as convergências progressistas, devidamente escoradas na ciência, na positividade, na estética moral (feminina) e na técnica, que colmatarão as eventuais divergências resultantes dum "vicioso nacionalismo".
Quanto ao "supremo poder temporal" de cada república positiva, Comte atribui-o a um triunvirato deveras sugestivo e agoirento: os três principais banqueiros da mesma. Não menos curiosamente, o número de templos positivistas, no Ocidente, será igual ao número de banqueiros, competindo a cada um destes o financiamento e a manutenção dos antros de culto.
Depois de regenerada a Europa ocidental, o clero positivo consagrar-se-á ao proselitismo no restante mundo, empreendimento que em três gerações, pelos cálculos do protopapa da Humanidade, estará viçosamente concluído. Nessa altura bendita, purificado e uniformizado todo o globo, «as distinções orgânicas (entre as três raças, branca, amarela e negra) tenderão a desaparecer, em virtude da sua própria origem natural, e sobretudo pela via de adequados casamentos. A sua combinação crescente proporcionar-nos-á, sob a direcção sistemática do sacerdócio universal, o mais precioso de todos os aperfeiçoamentos, aquele que diz respeito a toda a nossa constituição cerebral, assim tornada mais apta a pensar, agir e mesmo amar».
Desenlace épico e emocionante, esse, que permitirá, por fim, ao Grande Ser Humanidade assumir para todo o sempre o lugar de Deus. Ámen.


Ora, que certas semelhanças entre este receituário e alguns dos pratos típicos da culinária socio-política europeia dos últimos cem anos sejam pura coincidência, serei eu o último a pôr as mãos no lume por tão angélica e, por isso mesmo, tão arriscada ilação.
Tal qual não garanto que, na capela itinerante dos Bilderbergs, Comte não tenha, em permanência, um altarzinho.

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