As revoluções, mesmo quando antecedidas do prefixo “pseudo” (quase todas, portanto), fazem-se invariavelmente acompanhar dum cardápio de ideias peregrinas. Todas elas urgentes, todas elas magníficas, todas elas prioritárias. Uma dessas, aquando da primavera Abrileira cá do burgo, era: “temos que educar o povo!”
Uma série de romeiros iluminados, regressados dos exílios dourados na estranja ou dos piqueniques selvagens nas colónias, acolitados por chusmas de marxistas-leninistas instantâneos, em patrocínio da Farinha Amparo, tomaram-se de brios e entusiasmos, e propuseram-se ir educar o povo, a massa ígnara, bruta e analfabeta. Como sempre nestas aventuras, tomaram por princípios e axiomas meros preconceitos. A saber, 1. Que o povo era educável; 2. Que o povo queria ser educado; 3. Que eles reuniam e congregavam sob o substracto córneo das suas sapientes trunfas o know-how bastante para educar o povo. Havia também um eufemismo muito usual por altura destas balbúrdias: confundia-se “educação” com “lavagem ao cérebro”. Ou melhor, dizia-se “educar”, mas, no fundo, queria dizer-se “lavar”. Eles, abençoados pela História, tinham que desencardir o povo, que escorria merda e surro de quase cinquenta anos.
Ora, sempre que uma caterva de luminárias se decide a educar quem quer que seja, e sobretudo o “povo”, a primeira coisa que faz é arranjar um modelo (de preferência de importação, são sempre os melhores). Em se tratando daquela região europeia situada a oeste de Espanha, pior um pouco. A discussão, de séculos, nunca é “quem somos ou quem devemos ser”, mas sim “quem copiamos ou quem devemos copiar”. Se na aparência poderão passar por homens ao observador menos atento, na essência não enganam: são verdadeiros macacos de imitação. Encontrareis excepções a esta regra, mas, certamente, não nas elites –políticas, culturais, sociais, industriais –, lá do sítio. Aí, a macaquice, jurada e jactante, é condição de acesso. Vivem à coca da casa do vizinho e do que o vizinho lá mete. O país inteiro, por osmose, como os seus átomos constituintes, espia o resto do bairro/mundo e roi-se de inveja das Franças, das Escandinávias, das Inglaterras ou das Américas. Que povos educados, a transbordar civismo e boas maneiras! Que maravilha de pessoas! Que inteligências amestradas, atestadas de higiene e sentido do dever fiscal! Que trabalhadores ordeiros e laboriosos! A unanimidade quanto à superioridade do que é estrangeiro não podia ser maior. As divergências, essas, animadoras de polémicas virulentas e vociferações descabeladas, germinam desse dogma básico e encarniçam-se à volta da tal questão fulcral e de importância transcendente, ou seja: Sendo certo que só existimos se copiarmos, quem vamos então imitar. Isto predetermina tudo.
Por alturas da grande convulsão primaveril, a diferença é que o leque de escolha era ainda maior do que é hoje. Não só os belos povos ocidentais podiam servir de paradigma, como também uma série de outros, da Albânia à Cochinchina, despertavam a cobiça e os ímpetos emuladores dos fogosos endoutrinadores da plebe. O difícil era a escolha. Quase todos os povos eram melhores que o nosso, mais limpos e imaculados. Bastava ir ao Atlas geográfico. Ao nosso, repito, emporcalhava-o, inquinava-o até aos ossos – e à medula dentro dos ossos – a longa noite fascista. Era fascista como podia ser outra coisa qualquer. A palavra caíu-lhes no goto; dignificava e canonizava a sedição, beatificava o tumulto, justificava toda a parafrenália de medidas drásticas e emergências médicas. Também o povo, há que reconhecê-lo, era pólvora seca, anelante, à espera de faísca. Aliás, essa, é sempre a sua postura predilecta: barril a clamar rastilho. Ainda para mais, xenómano a ressacar desde há mais de quarenta anos sem o chuto de estrangeirina no dígníssimo cu, agradeceu, merejado em êxtase, mal experimentou o valente coice dos novos mestres. Foi vê-lo a levantar voo, retropropulsionado, como se foguetões o catapultassem. Foi à lua e veio. De caminho deu uma espreitadela à União Soviética e descuidou-se todo pelas calças abaixo. Ainda hoje tresanda ao susto, ainda hoje expia o trauma. A ideia de copiar a União Soviética, claro está, era a mais peregrina de todas. Por isso mesmo, à época, triunfou no concurso e surgiu, resplandecente, meteórica, como a mais fascinante e sublime. O povo soviético, na perspectiva de então, emergia nimbado de fulgores e virtudes, açambarcava medalhas olímpicas e exportava bailarinos. Era, pois, de todo conveniente imitá-lo o quanto antes.
O que sucedeu depois já todos sabem. Para vermos até que ponto era brilhante essa tese, basta dar, hoje, uma volta pelo paraíso de trolhas em que se tornou a nação: os ex-virtuosos e fulgurantes licenciados soviéticos, supra-sumo da educação, cartam agora baldes de massa e formiguejam pelos andaimes acima e, de quando em vez, dos andaimes abaixo. Triste fim para um império tão luminoso. Mas uma ideia peregrina nunca anda só. Abortada a fotocópia soviética, enveredou-se pela imitação da gleba europeia e, ultimamente, lançam-se olhares de maravilha e cobiça à gleba americana. Entretanto, as funções elementares da escola –coisas como ensinar a ler, a escrever e a contar-, desvaneceram-se sob uma catadupa de novas pedagogias, avançadas psicofolias e mirabolantes reestruturações ou paixonetas, cada qual mais mentecapta e mentecaptizante que a anterior. Os níveis de analfabetismo da pátria não esmoreceram por aí além – continuamos os menos alfabetizados de todos. Em contrapartida, os de analfabrutismo dispararam, em todas as direcções, e colocam o país, senão no comando destacado do Primeiro Mundo, certamente muito próximo disso. Uma miríade de especialistas debruçam-se sobre coisa nenhuma e montam comissões de volta de cada palha. O resultado?
É manifesto: Aos poucos, em fornadas anuais e sucessivas, os licenciados da pátria, cobaias de sucessivas Sextas Divisões de dinamização cultural, vão fazer companhia aos ex-soviéticos, a cartar massa pelos andaimes acima e, ocasionalmente, em voo picado, dos andaimes abaixo. Não se trata duma injustiça: é, de facto, o nível da sua licenciatura, o alcance da sua educação. Num país que passa o tempo, numa compulsão obsessiva, a alcatroar terras, a erigir caixotes de betão e a terraplenar tudo o resto, outro destino não seria de esperar. Depois, é preciso não esquecer que desde que trolhas atávicos, por via do sortilégio de licenciatura à pressão, em patrocínio da farinha Amparo, tiveram acesso às cadeiras docentes e, nos últimos trinta anos, se refastelaram nelas a seu bel-prazer, produzir algo mais que trolhas, suas réplicas e decalque, seria impensável. A não ser por obra e graça do divino Espírito Santo.
Moral da história: Os políticos não educaram o povo, porque o povo não se auto-educa. E o Espírito Santo, de facto, obra, mas cobra juros.
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