terça-feira, dezembro 25, 2007

Eu não acredito em Deus




Um dos sinais evidentes da puericultura predominante no nosso tempo é a zaragata e o chinfrim, verdadeiramente fetichistas, em redor da existência (ou desistência) de Deus. Crentes e descrentes, quais bandos de pardais à solta, trocam pedradas e mimoseios dignos de qualquer recreio de jardim-escola.
Ora, Deus não é objecto de conhecimento, nem, tão pouco, de crença. Quer isto dizer, logo à partida, que não pode haver uma “ciência de Deus”, nem um “feiticismo de Deus”. Isto, apesar de ser isso o que por aí, e desde tempos imemoriais, sobremaneira abunda e efervesce. Um ídolo, mais ou menos perverso, que oscila entre o totemismo da Razão e o totemismo da Tribo. E, pior que tudo isso, um fetichismo a querer fazer-se passar por ciência, e uma ciência a querer tornar-se fetichismo.
Todavia, Deus não se acredita, nem se calcula: celebra-se. Respira-se. Vive-se. Muito mais que convicção, é acção. Não me imagino a calcular, contabilizar e catalogar as batidas do meu coração. Nem me imagino a proclamar a cada minuto que tenho fé, que rezo, que rogo ao Além para que ele não páre no minuto seguinte.
Suspeito que a questão fundamental não é se “eu acredito em Deus”. Acreditar é “dar crédito” – quem sou eu, um ser efémero que vive por empréstimo, para conceder crédito a Algo que me transcende? Haverá maior acto luciferino que proclamar “eu dou crédito a Deus”? Significa fazer de Deus um devedor meu: Alguém que tem dívidas e deveres para comigo. Não raramente, obrigações. Pervertidamente, é inverter e perverter a Ordem Cósmica: fazer da criatura, credor. Fazer do facto, fazedor. É transformar a própria Vida – e toda a metafísica que nela habita – numa mera relação contratual. Num agiotismo espertalhão. Num Fundo obrigacionista. Em que mercearia forjaram um "deus" destes?
Desenganemo-nos: a questão fundamental não é se eu acredito em Deus, mas, isso sim, se Deus ainda acredita em mim. Se eu, reles e mísero humano, cada vez mais longe do meu coração, cada vez mais afastado e disperso da minha própria raiz e da minha Palavra, ainda sou digno de crédito. Se ando perdido na confusão à procura do caminho para casa; ou se, viciado e embrutecido no caos, me tornei habitante dele. Se ainda procuro alguma verdade, ou se, pura e simplesmente, me tornei toxicodependente da mentira. Só uma cegueira veemente, uma estupidez grosseira pode transportar-nos a essa ideia peregrina de que me compete acreditar em Deus, como se ele precisasse do meu crédito para alguma coisa. Obrigar alguém a uma crença é negar Deus, é proclamar o seu contrário. Um Deus obrigatório é um Deus obrigado, convertido, sujeito dum contrato, em suma, proto-estado providência e, simultaneamente, super-agência de interesses. Porque, disso pelo menos não me resta qualquer dúvida, a crença em Deus deu origem à crença na liberdade, ou à crença na democracia, ou na salvação do mundo por obra e graça duma qualquer crença.
Não espanta – e constitui evidência ubíqua ao longo da nossa vida: quem mais perdido anda, é quem mais enche a boca de salvação; quem mais escravo age, é quem mais atafulha a boca de liberdade; quem mais totalitário e intolerante arfa, é quem mais atesta a bocarra de democracia; quem mais idolatra o próprio umbigo (pessoal e clubista), é quem mais proclama o seu amor assolapado ao outro, à humanidade. Confundem fé em Deus com bajulação a Deus. E celebração com suborno.

É de tudo isto que nasce um aforismo que há muito tempo me persegue – “eu acredito em Deus; Ele é que, desconfio, não acredita em mim.” -, e que hoje (não me peçam para explicar como, porque não sei) finalmente compreendi.

9 comentários:

  1. Meu Caro Dragão,
    se a impssibilidade e o contra-senso de abarcar o Númeno são evidentes, não me parece de desdenhar o grau de conhecimento presente na Revelação, na exegese da respectiva Mensagem, quer se encontre ou não Nela a Manifestação do Divino.
    E onde a Salvação me parece incomparável a democracias e outras abstrusas aspirações é em ser uma Tonalidade de Esperança para um Plano Superior ao da humanidade que conhecemos, enquanto que a deificação dos votos, quer dizer, das próprias excrescências, não vai além do onanismo menos apto.
    Abraço

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  2. Anónimo7:38 p.m.

    Feliz Natal para si, Dragão!

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  3. Anónimo10:44 p.m.

    "Em que mercearia forjaram um "deus" destes?"

    Na mercearia da Igreja Católica, caro Dragão. Mais textos como o seu e talvez muitos ateus e agnósticos que por aí andam tivessem compreendido o significado verdadeiro do significado de Deus.
    Ou então, que a Igreja tivesse abandonado há mais tempo o conceito da "mercearia", como o está a fazer agora.

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  4. E fez-se satori.

    Abençoado...

    Cumprimentos

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  5. Um xi-coração muito apertado de uma perdida na confusão à procura do caminho para casa.

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  6. De outras vozes religiosas esclarecidas também já me tinha chegado que não é importante que se acredite em Deus mas que Deus acredite em nós. Outra achega, a fé não é tanto crença mas mais confiança.

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  7. Anónimo1:43 p.m.

    Caríssima Terpsichore, e outro igualmente estrafegante deste seu companheiro de busca.

    Caro Mário,
    isso é exactamente o que deixo implícito: que a genuína fé é confiança.

    Aproveito para desejar um óptimo 2007 a ambos.

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  8. "Deus não se acredita, nem se calcula: celebra-se. Respira-se. Vive-se. Muito mais que convicção, é acção."

    Só celebra, respira e vive (em acção) se acredita, de outro modo torna-se incapaz de senti-Lo.

    “eu acredito em Deus; Ele é que, desconfio, não acredita em mim.”

    Deus é, por princípio, um crente. Logo, acredita em todos, incluindo no Dragão, mas concede-nos total liberdade de acção. E por via desta exige-nos responsabilidade. É só.

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  9. Anónimo1:17 a.m.

    Sinceras as suas palavras Sr. Dragão, por isso mesmo é que Deus se fez homem, descendo à condição humana morrendo e vencendo a morte, para nos ganhar pra Ele através de Jesus Cristo, Aquele que os judeus negam.

    "Porque Deus amou o mundo de tal maneira, que deu o seu Filho unigénito, para que todo aquele que nele crê não pereça mas tenha a vida eterna"
    João 3: 16

    p.s.--- O ateísmo só faz sentido num mundo onde Deus existe. Então se para um ateu Deus não existe qual é a sua necessidade de provar a sua inexistência?


    alguém que acredita

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