domingo, setembro 09, 2007

O Sousa Veloso

Passou por mim o Engenheiro Ildefonso Caguinchas. Perplexo, por via destes dois que a terra há-de comer, reparei que transitava com um saco de viagem na mão esquerda e um ovino pela trela na direita - lanudo e de olhar meigo, por sinal.
Como eu tardasse em sair da estupefacção, ele, o Engenheiro (que a ovelha, essa, permanecia silente), foi adiantando serviço:
- "Vou aproveitar este fim-de-semana que não há jogo do Glorioso e vou visitar a famelga ancestral à terrinha. Ainda pra lá tenho uns primos e tios longínquos. Aproveito e farejo de partilhas e heranças. Nunca se sabe se não me toca algum. O Gaudêncio Bexigoso dá-me boleia no camião."
Lá desentupi da visão aparvalhada, e deitei-me a adivinhar:
-"Presumo então, ó caro Engenheiro, que o animal é para algum banquete... Ou para ir merendando durante a viagem..."
-"Ah, não, nada disso! -Desenganou-me ele, prontamente. - Aluguei-a na feira da Malveira. Chama-se Eloísa, segundo me confidenciou o saloio que ma alugou." Num Rente-o-Ovino, segundo dizia na tabuleta e pude ler no anúncio do Correio da Mamã, logo abaixo do Professor Katanga.
- "Mas eles agora também alugam ovelhas? - Abismei-me. - Com e sem pastor?".
- "Esta foi sem pastor. - Explicou o Engenheiro. - Se bem que o gajo tudo fizesse para me impingir o pastor, mas eu é que não precisava do pastor pra nada. Só ia atrapalhar!!..."
- "Ele há cada um!..." -
-"Era um saloio bestialmente pencudo. - Diz-me ele. -Até me tentou alugar um burra ao mês. Diz que tem muito sucesso, quase tanto quanto um lama. Com uma penca daquelas, desconfio que até a mãe era capaz de alugar. A penca, no homem, ensinou-me o Dinossauro, faz de radar para o negócio. O que é preciso é descobrir um bicho no mercado!... "
Ele queria dizer um nicho, mas nem me dei ao trabalho de corrigir. Porque, na verdade, o nicho redundara num bicho, e o bicho, esse, é que me intrigava descomunalmente.
-" Mas, porque diabo, ó Caguinchas, levas tu o bicho?!..." - Quase gritei, esquecendo até a etiqueta e o protocolo devidos ao licenciado, mestre, catedrático e jubilado.
- "Não é bicho, é a Eloísa. Vê lá como é que falas, ó Dragão, porque ela é muito sensível. - Retrucou de lá ele, visvelmente sacana e com ar de quem estava para fazer render o peixe, digo, o ovino. - Mas é óbvio que a levo porque aqueles campónios agora, desde aquele dia de que não se te pode falar sem que desates aos murros nas mesas e aos pontapés nas cadeiras, têm todos televisão. Foi logo a primeira coisa que os revolucionários fizeram: levar-lhes a televisão... 'Tás lembrado, não, daqueles magalas guedelhudos e dinamizadores pelas berças acima?..."
-" Foda-se, Engenheiro, não me fale numa merda dessas que até me passo dos carretos!... Levaram-lhes a electricidade para eles se porem na alheta para a cidade. Dantes, estavam lá as pessoas sem a electricidade; agora está lá a electricidade sem as pessoas, fora meia dúzia de almas penadas e relíquias a aguardar despacho!...Dum país com carências fizeram um deserto electrificado." - Indignei-me e vociferei, agredindo um caixote do lixo incauto que assistia à conversa.
-"Sim, mas não são só desgraças e amarguras, compadre. Também há brindes. Agora no verão, parece que aquilo se enche de Áveques, doutores fi-fis e outras aves de arribação, mai-las respectivas madames e demoiselas, todas de fogo no rabo e cona aos saltos, segundo me apercebi. Eles vêm para matar saudades, elas vêm para experimentar pau tradicional!... Aquilo é arraiais e foguetórios que nunca mais acaba!..."
-"Sim, mas o que raio tem a televisão, os Avéques, os fifis e esse folclore todo que ver com a ovelha Eloísa?..." - Impacientei-me.
Aqui, o Engenheiro ensaiou uma pausa premeditada, ministrou um tápe-tápe na cabeça do animal (que, odorando um curioso perfume entre o Chanel 5 e o bedum, semi-ronronava), e respondeu:
-"Então, pá, aquilo, 'tá-se mesmo a ver, é malta instruída, engodada, bem televisionada... Aquelas mioleirazinhas devem estar no ponto, mais nhanhificadas que marmelada no verão. Devem chupar esses novos Corin-Telados até mais não. É jet-seita na veia à força toda!... Portanto, é mais que certo que a moda não lhes escapa..."
- "A moda? Qual moda?..." - Desesperei.
- "O suingue, ó Dragão. Aposto que é suingue que nunca mais acaba. Ora, se na cidade, entro com a puta; na província, entro com a ovelha. Não é Eloísa, minha linda?"
- "Bééé!..." - Pareceu concordar, por incrível que pareça, a simpática borrega.
Entre o assombro e a maravilha, lá me despedi do bizarro casal. E enquanto, mais à frente, o camião do Gandêncio Bexigoso recolhia o Engenheiro e respectiva partenaire, não me contive de pensar para com os meus botões:
-"Entre os portugueses, audazes também os há, às vezes."*

Ao longe, da janela do Camião, o Engenheiro, levado da breca, ainda me lançou um último grito, todo ele pleno de elevada lusitanidade:
-"Ó Dragão!!, e eles PIMBA!..."
E pronto, lá foi. Armado em Sousa veloso.

* - favor conferir com um verso de Luís Vaz de Camões.


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