quarta-feira, agosto 01, 2007

Os Poucos Demasiados



Às três perguntas obtive três respostas. Começo por agradecer a gentileza de se ter dado ao trabalho, o caro Corcunda, e já de seguida, se mo permite, passo a advogar o diabo, que ainda é meu primo por via apocalíptica.
Na primeira resposta não pego: está sibilina quanto baste. Mas a segunda -ah, a segunda!... - chamo-lhe um figo, um manjar que só não é dos deuses porque é dos diabos. Atiro-me pois a ela como dragão ao bofe...
Relembrando, para os que agora chegaram, afirma o meu estimado e sapiente amigo:
"Acreditar na unicidade da natureza escorpiónica do Homem é mais dogmático e infundado do que acreditar na possibilidade de aperfeiçoar a Natureza. É mais literário que outra coisa... Acreditar que os poucos não podem aperfeiçoar os muitos é desmentir a civilização e o próprio Aristóteles."
Ah, sublime! Seja então. Acreditemos com todo o fervor que os poucos podem aperfeiçoar os muitos. Convençamo-nos na possibilidade ladina e campeã de aperfeiçoar a Natureza -presumo que estritamente humana, porque senão o caldo não se entorna: vira erupção vulcânica. (O meu primo perguntar-lhe-ia logo, cinicamente, "porquê, jovem? Não me diga que a Natureza está mal acabada... Quer ver que o Criador era trapalhão!..." - Está a ver onde é que isto leva?...)
Mas é o Homem apenas, esse pecador ilustre, essa vedeta da Criação que importa aperfeiçoar. Não descambemos.
Essa ideia de que os "poucos podem aperfeiçoar os muitos" encanta-me. Especialmente porque tem muitos a sustentá-la. A Santa Madre Igreja, por exemplo... Andou praticamente mil anos a aperfeiçoar a malta, uma Idade Média inteira. Bruniu, lustrou, burilou, aperfeiçou e tornou a aperfeiçoar. Teve o tempo quase todo do mundo e o beneplácito das autoridades. E quando já tinha o sujeito muito bem aperfeiçoado, eis que surge quem? - O homem moderno, esse pimpão. Que maravilha! - todo luminoso e protagonista...Uma beleza! O burguês-rei em pessoa, todo catita. O proto-ubu em acção. Com a lição muito bem aprendida. Direitinho, que nem bólide desenfreado, ao pescoço do rei e às jugulares do povinho. Desalmado até à medula. A Igreja, vejamos lá bem, com aquele trabalho todo, tão fulgurantes pensadores, uma hoste completa de santos-jóqueis de Platão e Aristóteles -estropiados e miniaturizados, estes, é certo, mas mesma assim superiores a qualquer Descartes de meia tigela - e o resultado é aquele? Nem Deus lhes valeu. Que desperdício, que esbanjamento inaudito de sinergias e prendadas doutrinas.
Ah, mas o paradigma manteve-se. Apenas mudou de hospedeiro: os jacobinos também acreditavam piamente que os poucos podiam aperfeiçoar os muitos. Regra geral e imperatriz, cortando-lhe a cabeça em excesso, quando não mera redundância da tripa. O seu projecto, aliás, era duma audácia exuberante: importava arrancar aquela cabeça cheia de ideias más e implantar em seu lugar uma outra atestada de ideias boas. Infelizmente, a guilhotina, esse magnífico instrumento, só resolvia a primeira parte do programa. Foi preciso esperar pela segunda metade do século vinte para que finalmente surgisse uma máquina capaz do programa completo: a televisão.
Voltando à saga paradigmática: na senda dos jacobinos, vieram depois os marxistas-leninistas. Ninguém lhes dissesse que tinha dúvidas de que os poucos pudessem aperfeiçoar os muitos. Ai do céptico! A vanguarda da classe operária, primeiro, a nomenclatura, logo a seguir, estavam mandatados pela Santa História Científica para acabar com todas as dúvidas. Os poucos não só iam aperfeiçoar os muitos como iriam aperfeiçoar o mundo na forma dum paraíso terreal. Ao fim de quase cem anos nessa inefável culinária, o resultado foi a "perestroika" que se viu: corrupção em catadupa, miséria de três em pipa, descalabro e canibalismo económico. Os muitos viraram trolhas emigrantes, os poucos deram um nababos ostentatórios de meter nojo aos cães e inveja aos donos.
Entre nós, que também somos gente, calhou-nos no sorteio o professor Oliveira Salazar, excelente pessoa, homem com ideias e coluna, patriota dos quatro costados. Também ele acreditou que os "poucos poderiam aperfeiçoar os muitos". Andou quase meio século a chocar o "português novo". O problema é que, enquanto isso, enquanto assim rejuvenescia a raça, ia ele próprio envelhecendo. Por fim, estertorou e morreu. Sem sequer ter tempo para apreciar o portento que eclodiu do seu esforçado e benemérito ovo: aquela turbamulta floribunda de 25 de Abril de 1974, nem mais. Modernaços aos molhos, que só visto; iluminados às mancheias, em catadupa. Uma corja desenfreada, se quisermos entrar em rigores. A quem o jejum forçado apenas serviu para assanhar e envespecer à quinta casa.
E por falar em vespeiros, a Maçonaria, jovem amigo, a Maçonaria também crê, com quantos graus tem, que os "poucos podem aperfeiçoar os muitos". E trata de agir em conformidade. No que a Opus Dei quase a gemina do outro lado do espelho. Quanto à rapaziada da globalização também arde nestas sofreguidões de "poucos a aperfeiçoarem muitos". Já não falando em quatro mil seitas evangélicas, nos pedigrees eleitos arianos ou judaicos, nos deterministas festivos da Santa Ciência, etc, etc, para não ficarmos aqui a debitar até às calendas. É claro que em todos estes programas, os princípios e os fins variam, conflituam, rivalizam (pelo menos, na aparência); os meios também. Mas o objecto, o veículo, é sempre o mesmo: O Homem, esse desgraçado. Ou melhor dizendo, os homens, porque o Homem, a não ser como pretexto para aperfeiçoamentos peregrinos, não se vislumbra onde exista. De resto, nesse conceito fantástico particularmente sinistro adivinho eu a "torre de Babel". Se bem que, na realidade, não passe duma torre de bosta, onde cada hospedeiro tem deposto o seu andar "civilizante", na saga porfiadamente luciferina do assalto aos Céus.
Em resumo, acreditemos que os "poucos podem aperfeiçoar os muitos". Tenhamos fé. O pior é o raio da companhia, não acha?... Não o tenho na conta daqueles que gostam de ver desfilar a Madre Igreja de braço dado com a prostituta Gnose. E, caramba, para "poucos" já são demasiados!

Falando agora a título estritamente pessoal, vou ser franco: não acredito que possua eu aptidão especial para aperfeiçoar o meu semelhante e desconfio justificadamente de quem me queira aperfeiçoar a mim. Sou, pois, de ambições mais humanas e éticas mais humildes: contento-me em teimar que não me piorem. E olhe que não está nada fácil.
Termino, por agora. Mas prometo voltar à carga. E espero que o meu amigo continue com o seu excelente blogue a dar-me motivos para estes raides que, estimo bem, encare menos como provocação "nihilista" e mais como estímulo ao seu próprio aperfeiçoamento. Afinal, Aristotelicamente falando (livro lamda da Metafísica) o único tipo de aperfeiçoamento que está ao seu alcance.
Aos outros, quer-me cá parecer, e percebesse eu alguma coisa do assunto, Cristo não recomendou como virtude capital a arrogância de aperfeiçoá-los, mas a humildade de amá-los. Tal qual Ele fez. E penou no Calvário e na Cruz, justamente, por isso. Tenha a bondade de corrigir-me se isto não é verdade.

19 comentários:

  1. "Infelizmente, a guilhotina, esse magnífico instrumento, só resolvia a primeira parte do programa. Foi preciso esperar pela segunda metade do século vinte para que finalmente surgisse uma máquina capaz do programa completo: a televisão."

    ahahaha

    Não há mais ninguém a escrever assim

    ResponderEliminar
  2. "contento-me em teimar que não me piorem. E olhe que não está nada fácil."

    E' pa', finalmente alguem que me compreende!! :O)

    ResponderEliminar
  3. Eu cá fico como ó outro. Foi e é justo. Não se perdeu nem se perderá nada. Mesmo que se quise-se passar à frente de uma ou outra desgraça alguém teimaria em lá voltar para que não nos coibisse-mos de a experimentar. Os filhos do Tudo entretêm-se em tudo (O) experimentar. Em linguagem técnica a História é um "Brute Force", um tanto ou quanto radical...

    ResponderEliminar
  4. Lá isso, madrinha zxazxie :D

    ResponderEliminar
  5. engasgaste-te, afihado poeta?

    ":OP

    ResponderEliminar
  6. Este post é um grande manifesto Liberal!

    ResponderEliminar
  7. Ah! Agora a Gnose é que é a puta!? Ta bem ta, óh Dragão!
    Bem, atendendo à antiguidade é caso para dizer que então somos todos filhos Dela!

    Legionário

    ResponderEliminar
  8. Eu não disse puta: disse "prostituta". Quer dizer, "puta das elites".

    E cuidado comigo que agora sou um Grande Liberal.
    :O)

    Dragão

    ResponderEliminar
  9. é verdade, ainda não te tinha cumprimentado nessa nova qualidade

    ":O)))

    ResponderEliminar
  10. Obrigadinho, Zazie.
    Como não os consigo vencer, junto-me a eles.
    Em breve, desato a ler pensadores anglo-saxónicos de vão-de-escada e a proferir banalidades com ar de quem se empifou em soro da verdade rosé!...
    Vai ser o bom e bonito!...

    :O))))

    Dragão

    ResponderEliminar
  11. ahahaha


    Vais ver que ainda te convidam para uma nova quadratura das bestas

    ahahahahah

    ResponderEliminar
  12. Das bestas e das bostas...

    :O))

    Dragão

    ResponderEliminar
  13. salvo seja...

    Foi sem querer. Até já te estava a ver com a ucraniana
    ehehe

    ResponderEliminar
  14. a ucraniana ao colo e o Caguinhas debaixo da mesa com a brasileira

    ahahaha

    ResponderEliminar
  15. Bem, se eles me deixarem presidir, ou seja, "estar de ucraniana ao colo", ainda sou capaz de lá ir.
    O Engenheiro Ildefonso, naturalmente, também será imprescindível: para ministrar calduços ao Bruto, sempre que ele fizer menção de abrir a matraca.

    :O))

    Dragão

    ResponderEliminar
  16. Dragão:

    Ou os humanos podemos mudar ou não mudamos. Se não mudamos, não precisa de se preocupar consigo em não piorar. Mas, se podemos mudar para pior, por que não para melhor?

    Para mudar muito a muitos, para mudar tudo, Um só bastou e basta. Deixou Doze, e estes doze mais Um chegaram para a grande Mutação que se vem operando e acelerando desde há dois mil anos. (Compare-se com os dois mil anos anteriores…)

    Quanto à “Idade Média” e à “Igreja”, a mesma coisa: veja um S. Bento, um Bernardo de Claraval ou um Francisco de Assis. Garrote, guilhotina ou cadeira eléctrica não são mudanças significativas: é mais do mesmo. Mas a progressiva abolição da pena de morte, isso sim.

    Há uns poucos que emendam o mundo começando por se emendarem a si próprios, e há uns presunçosos que se julgam isentos desta regra irrevogável. Havia um tal entre os Doze. É a estes presumidos impecáveis – mas só a estes – que se aplica a sua crítica justiceira. Mas não é razão que deixe com estes morta toda a esperança de que muitos melhorem.

    Penso que é a esta regra que se refere quando fala de Aristóteles, mas não encontro a referência no livro lambda da Metafísica. O que no fecho dele encontro são estas palavras, na tradução de Guilherme Moerbeke que S. Tomás deve ter lido: “Non bonum pluralitas principatuum. Unus ergo princeps.” Que não sejam bons os desencontrados poderes das facções, mas que um só mande – é o que parece vir de encomenda para o nosso bloguista Corcunda, não acha?...

    ResponderEliminar
  17. Caro Duarte,

    Diz várias coisas com sentido.

    O blogador Corcunda merece-me toda a consideração.

    Quanto à Metafísica, sugeria-lhe antes outra passagem:
    «Este (o acto), mais que aquela (a potência)é o divino que o espírito parece possuir, e a contemplação é o mais desejável e o mais nobre.»
    Livro L (XII) 1072b 23-24

    Deixo-lhe uma questão: O que pensa do "elitismo"?

    ResponderEliminar
  18. Com “ismos” é-me difícil pensar; fácil sentir a repugnância pelos excessos, tanto dos iluminados “poucos” sobre os “muitos”, como destes entrevecidos sobre aqueles. Cruzam-se os dois sentidos nesta crucificada hora má que é a nossa.

    Ajuda-me a citação aristotélica que fez. As elites são de necessidade natural. Mas, poucos são “mesmo bons”. Quem são; onde estão exemplos; onde se formam “os melhores”, os capazes de viver melhor o melhor, ao melhor estilo?
    Saberá V. que os gregos em geral na Filosofia (e Aristóteles não é excepção, nem os cínicos de que já lhe falei) sobre tudo prezam o bios theoretikos; já os romanos mais as práticas marciais e estritamente cívicas, menos atreitos a anacoréticos desapegos. (Cf. a legenda em exergo deste blogue…)

    A Espada de Fogo que o Deus-Homem veio atravessar no mundo, corta por outro Critério: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste…” “Quem de entre vós quiser ser o primeiro…” Mas, no passar do VER teorético para o SERVIR ético vai o difícil passo da subida ao monte Calvário. Um pagão dos “mesmo bons” ainda seria capaz de ver neste caminho áticas harmonias com a crucificada hora má que é a nossa; ou um desafio à medida de estóicas virtudes… Mas o próprio Cristo precisou da ajuda do Cireneu.

    E onde estão os que servem como devem? Eu, se fosse professor de Língua Portuguesa, diria aos meus alunos: - Leiam e releiam o autor deste blogue, que é um dos que não fode a Língua Madre e deixa confodidos quantos Rosés Zaramagos a enodoam e maltratam!...

    O jovem doutor Corcunda é outro que também me merece toda a consideração.

    ResponderEliminar
  19. Pois, caro Duarte, não reside o mistério nessa dura palavra - Servir?...

    Servir ao Todo ou à parte?...

    Chamavam - os Antigos - sacrifício ao tributo que a parte deve ao Todo.

    Concordaremos em quase tudo excepto nesse penúltimo parágrafo.

    Terei sempre todo o interesse em lê-lo por estas paragens.

    ResponderEliminar

Tire senha e aguarde. Os comentários estarão abertos em horário aleatório.