«O intelectual do século XII, situado no centro do estaleiro urbano, vê o universo à imagem e semelhança da cidade, vasta fábrica borbulhante de ruídos e de ofícios. A metáfora estóica do mundo-fábrica é retomada num meio mais dinâmico com um alcance mais eficaz.»
- Jacques Le Goff, "Os Intelectuais da Idade-Média"
Acontecem várias coisas deveras significativas no século XII, muito por via da chamada Escola de Chartres...
- Jacques Le Goff, "Os Intelectuais da Idade-Média"
Acontecem várias coisas deveras significativas no século XII, muito por via da chamada Escola de Chartres...
É o século do grande afluxo de influências gregas e árabes; é o século do Homo-faber; da valorização do corpo (nesta vida); do novo ensino -além dos velhos trivium (gramática, retórica, lógica) e quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia) - das novas artes: Física, Mecânica, Economia e Política; também, por influência árabe, do interesse pela alquimia, pela astrologia e pela magia; do racionalismo de Chartres que se baseava na "crença na omnipotência da natureza"; da crítica do simbolismo (conceito tradicional que conotava cada coisa natural com um correspondente oculto, sobrenatural); da Dessacralização da Natureza -uma vez que deixava de ter conotações metafísicas, tornava-se uma mera física permissível de investigação e manipulação técnica; e, finalmente, detalhe de consequências épicas, do Humanismo.
Comecemos por este humanismo... Em que consiste?
O Humanismo de Chartres estabelece o Homem como objecto e centro da Criação. A tese tradicional sustentava que o homem não passava de acidente daquela, criado por Deus para substituir os anjos decaídos após a revolta. Mas Chartres, aprofundando e secundando Santo Anselmo, contrapõe a ideia de que, desde o início, o homem estivera previsto nos planos do Criador. Mais: era ele o destinatário da criação. Deus criara o mundo para o homem. O que perde em mistério, a criação, ganha em nepotismo.
Significa isto, logo à partida, que o homem deixa de ser um particular entre outros, para se tornar um particular acima dos outros, mescla de herdeiro mimoso e vedeta. Depois, está-se claramente a submeter a mundovisão à antropovisão. Assim, o mundo deixa de ser apenas o lugar onde o homem vem servir a Deus: passa a ser o lugar onde o favorito de Deus se vem servir da Natureza. Quer dizer, a existência humana enriquece-se, optimiza-se: já não deve apenas servir a Deus; pode - e compete-lhe - servir-se do mundo. É neste proto-self-service que germina já, no óvulo, a self-made-man de séculos adiante.
Esta consagração do Homem deriva intimamente da dessacralização da Natureza. Basicamente, esta deixa de ser simbólica, como era desde a antiguidade, e passa a ser absolutamente racional. Ou seja, arrumada e legível segundo regras puramente racionais. Mais sintomático ainda, é que Chartres, ao mesmo tempo que deixa de considerá-la sagrada, passa a creditá-la como omnipotente. Eu traduzo isto: o homem adquire na Natureza um novo instrumento, um instrumento operável através da razão, e, detalhe sobretodos fascinante, um instrumento omnipotente.
Calculem agora onde é que isto foi dar... Quando, séculos adiante, o micro-girino se tornar batráquio-rex.
Se o sono da razão engendra monstros, o que engendrará a amnésia?...
E o que é a soberba senão a forma mais completa e furiosa de amnésia?...
Concordo com grande parte, no que toca aos intelectuais, mas não concordo que a quebra se tenha dado no século XII.
ResponderEliminarNão houve uma continuidade entre a Antiguidade e a Alta Idade Média. Tanto para os gregos como para os romanos (muito mais) o homem já era o centro e não foi preciso chegar-se a nova visão bíblica para a desssacralização da natureza se dar.
Na prática até vai continuar tudo muito confuso até meados do século XVI.
Aliás, a grande questão é a sacralização da natureza. É por aí que a Ciência vai avançar. Por uma natureza naturante que já vinha das teorias da Antiguidade.
O que a Igreja fez foi introduzir a tal centelha divina na alminha. Foi muito mais isso.
Com a centelha lá, não havia natureza sagrada que lhe resistisse
";O))
De resto, a noção de Vanitas é bem quinhentista. É uma forte resistência a um humanismo bem mais moderno.
Resumindo. Poupar gregos e romanos na história é um má ideia.
ResponderEliminar“A natureza humana é apenas um pouco inferior à natureza dos anjos” (o homem como Deus humano)- Isto dizia o Nicolau de Cusa no século XV, quando andava atrás das ligações do infinito. E, no entanto, o caminho dele é tão oposto ao do conhecimento racional de Deus
ResponderEliminarZazie,
ResponderEliminarConvém não pôr nos textos o que lá não está. Quando se escava vai-se por camadas.
Ninguém está poupar gregos nem romanos. Simplesmente, isto não é tudo ao monte e fé em Deus.
:O)
Intelectuais não é a mesma coisa que Igreja.
«Não houve uma continuidade entre a Antiguidade e a Alta Idade Média.»
Esta não entendi. Fico que nem boi a olhar par palácio.
:O)
Dragão
Dragão:
ResponderEliminarIntelectuais da escola de Chartres, segui a citação do Le Goff. Eram intelectuais e homens da igreja.
A ligação entre Antiguidade e Idade Média:
"Esta consagração do Homem deriva intimamente da dessacralização da Natureza. Basicamente, esta deixa de ser simbólica, como era desde a antiguidade, e passa a ser absolutamente racional. "
O que eu não percebo é de onde vem essa ideia do homem integrado na natureza na Antiguidade quando foram os gregos os primeiros a destacá-lo de toda a criação.
Assim como não percebo quando é que a natureza era sagrada (com os gregos e romanos?) e quando deixou de o ser- com a Escola de Chartres?
Não bate certo.
Bate certo, isso sim, a mudança de criatura entre as outras para criatura com centelha divina. Mas nem a natureza é dessacralizada automaticamente, nem o era mais na Antiguidade.
Creio que já é a segunda vez que temos esta discussão
eheheh
"O homem é a medida de todas as coisas"- ainda esta semana o citaste. Por isso é que o renascimento também vai dar ainda mais poder ao ser humano e à razão. Volta a essa Antiguidade racionalista.
Não houve continuidade porque a civilização cristã não é a continuação do mundo greco-latino, né?
Eu percebo a ligação racionalista entre a escolástica e o universo cartesiano. O que não percebo é que tenha havido uma noção de humanidade e natureza idêntica entre o mundo greco-latino e Alta Idade Média que terminaria com o racionalismo da escola de Chartres.
ResponderEliminarPor estranho que pareça a ciência até vai avançando à custa de uma "natureza" sacralizada. Um universo vivo, um microcosmos e macrocosmos ligados.
ResponderEliminarOra a tradição lógica e racionalista não deriva daqui.
resumindo: "Esta [a natureza] consagração do Homem deriva intimamente da dessacralização da Natureza. Basicamente, esta deixa de ser simbólica, como era desde a antiguidade, e passa a ser absolutamente racional.".
ResponderEliminarE quando é que isso aconteceu? no século XII? a natureza a deixar de ser simbólica?
Vai continuar a sê-lo por muito mais tempo.
E até é à custa dessa característica simbólica que melhor vai sendo dominada. Que o digam os alquimistas.
1.Os gregos não tinham essa noção de "criação": tinham um cosmos. O cosmos era um zoon, um ser vivo (Aristóteles) e o homem não era um separado da fusis: integrava-se nela. O noos (já que o logos não era meramente antropológico) era diferença específica, não sinal de onto-snobice. Em suma, o antropos era um animal, tal qual o cosmos -animal social, animal racional, "o mais imitador de todos os animais" (Aristóteles).
ResponderEliminarAdivinha qual foi a principal antítese do século XII? - Pois, homem/animal.
2. A centelha divina não é novidade nenhuma. Aristóteles já tinha o intelecto activo, que intuía isso com cabeça, tronco e membros.
3. Tem que se começar sempre por algum lado. Comecei pela Escola de Chartres, porque vislumbro aí uma espécie de nó rodoviário das mentalidades. Antecipa o que adiante virá e recolhe os diversos fluxos e impulsos que vêm de trás.
Eu chamo-lhe o "ponto de não retorno" num determinado percurso cultural. Depois de Chartres, suspeito que deixa de ser possível seguir por outro caminho.
Pessoalmente, considero que a modernidade se inaugura em Chartres.
Escusado será dizer que nada irrompe subitamente em Chartres, como que por geração espontânea. Nunca é assim. Chartres é apenas um daqueles pontos em que a lenta fermentação encontra o seu ponto crítico, deflagra e jorra numa determinada direcção.
4. É claro que, em termos filosóficos, a civilização cristã é a continuação do mundo antigo. Não será uma continuação que enchesse, por exemplo, Aristóteles de orgulho, mas é a continuação nos limites das conveniências religiosas. Santo Agostinho pensaria o quê sem Platão? Ou Escoto Erígena sem Plotino? Ou São Tomás sem Aristóteles?
O mais rico do "pensamento cristão", chamemos-lhe assim, foi essa tentativa eclética (e deveras peregrina, se queres a minha opinião) de conciliar e congregar a filosofia dos gregos com a Lei dos hebreus.
É uma espécie de tensão entre opostos. Heraclito dizia que dava música. Leo Strauss, esse ciganão, também. Bem, a música está aí. Resta-nos dançar.
:O)
Esqueci-me de assinar as anteriores patacoadas. :O)
ResponderEliminarDragão
Ok, Dragão, percebo a ideia e acho bem que comeces com a Escola de Chartres.
ResponderEliminarAs minhas dúvidas são outras. A mistura entre filosofia e entendimento do mundo nem sempre funciona. Se é verdade que a filosofia do cristianismo é continuação da filosofia greco-latina, não é verdade que sejam civilizações idênticas- como aliás tu próprio dizes.
O cristianismo opera uma enorme mudança.
Mas as minhas dúvidas são mesmo outras. Não sei se o mundo greco-latino tinha uma “integração” do Homem no mundo que o rodeia. Como não sei se existe uma ligação entre “integração” à custa do tal universo vivo porque, a verdade é que vai ser por aí que a Ciência vai evoluir na Idade Média.
Se queres que te diga, até penso que quanto mais “sacralizada” ou divinizada é a natureza, mais manipulável e dominável.
Por isso mesmo é que não existe uma relação directa entre racionalismo filosófico e experimentalismo científico. O problema não foi a natureza ser menos simbólica, foi a arrogância humana com essa razão divinizada e o que vai fazer com ela. Quando dizes: “Os gregos não tinham essa noção de "criação": tinham um cosmos. O cosmos era um zoon, um ser vivo (Aristóteles) e o homem não era um separado da fusis: integrava-se nela é verdade. Mas não é precisamente por se retomar esta ideia que a natureza se “sacraliza” no Renascimento? Não é precisamente por deixar de ser “plano insondável” de Deus para ser vivo – natureza que opera, que tem forças ligadas aos cosmos- idênticas a todos os seres vivos, que a ciência deixa de ter entraves religiosos para a manipular?
A questão é o sentido da palavra "sacralizar" ou dessacralizar.
ResponderEliminarSe estamos a falar do mundo cristão, a Natureza não era para ser conhecida- era plano indecifrável. E aí, sim, quanto menos da órbita de Deus, mais facilmente o homem e a manipula.
Mas, para isso, teve de se afastar da tal noção do cristianismo inicial e seguir a via do demo- o grande artifíce da matéria terrena- o que tinha os segredos cá de baixo. E vai ser por aí que se passa para uma Natureza operante-o tal ser vivo com funcionamento próprio passível de ser decifrado.
Primeiro, à custa das linguagens escondidas, depois pelo método racional.
É que existem 2 caminhos diferentes.
ResponderEliminarPor um lado tens razão, quando dizes que o cristianismo mudou, em meados do século XII, ao separar o homem dos animais (eu tenho dúvidas que o mundo greco-latino não o tenha feito primeiro e até ido muito mais longe nessa separação).
Mas a escolástica do século XII é trabalho mental. Não recupera o tal cosmos como ser vivo.
Mas ele vai ser recuperado. Precisamente no início do mundo moderno. E é por aí que a Ciência avança. Sendo que a ligação entre este avanço e o racionalismo filosófico nem sempre andaram a par.
Olha que não te citei o Nicolau de Cusa por acaso. Ele retoma essa ideia e daí ao Copérnico...
Zazie,
ResponderEliminarnem sequer a civilização romana é a mesma coisa que a civilização grega. Fora o verniz.
Quanto ao resto, a ideia base é emitir mais uns quantos postais que, eventualmente, abordarão essas questões que colocas e não gostaria de antecipar, senão perde a graça.
Agora, desculpar-me-ás, mas tenho que ir ao jantar da tertúlia "Os Fodidos da Vida".
Volto já.
:O)
Dragão
Para chegar a alguma conclusão sobre este tema (ou qualquer outro)de uma coisa eu tenho a certeza: não é concerteza alguém que põe um tijelo no cucuruto e se põe a queixar e às cabeçadas à parede feito pica-pau que vai chegar a alguma resposta.
ResponderEliminarE desculpe-se me este comentário despropositado, mas eu cá hoje só me apectecia dizer isto.
E papam bem, os fodidos a vida?
ResponderEliminar":O))))
Deixei-te um post a comentar, sffavor.
ResponderEliminarAbraço,
Zazie,
ResponderEliminaré mais pelo convívio conspirativo que pelo pitéu. Conspiramos contra o Destino. Não serve para nada, mas também não temos alternativa.
Não obstante, a comida, e especialmente a bebida, lá cumprem a sua missão.
Isso é que é importante. Que a bebida seja boa.
ResponderEliminarEntretanto vou-me atirar à puta da 5ª buganvilea
Já viste como o "nosso" José continua a dar-lhes trabalho, mesmo nas férias?
ResponderEliminareheheh
É tão engraçado o malandro