sábado, setembro 16, 2006

Cartas de Estalinegrado - II



"Nossa Senhora das Lágrimas que estás
sentado lá no Topo do Mundo,
e olhas as coisas, boas e más
cá dentro dos homens, bem no fundo.

Nossa Senhora das Lágrimas que és
a verdadeira Soberana deste Reino,
com a dor das almas toda a teus pés
e o desespero humano deitado no teu seio...

Nossa Senhora das Lágrimas que vês
os fios deste nosso Destino atroz,
e em silêncio escutas inúteis porquês
Nossa Senhora das Lágrimas, reza por nós!..."

XXXV

«Tenho chorado tanto nas últimas noites que eu próprio não sei como resisto. Já vi um camarada meu chorar, mas por outro motivo. Chorava por ter perdido o carro blindado que era todo o seu orgulho. E por mais inconcebível que pareça, eu compreendo que se possa chorar a perda de material de guerra. Para ele, era uma coisa que tinha vida. O facto é que dois homens choram. Sempre me comovi facilmente: um acontecimento chocante, uma acção nobre, faziam-me chorar. O mesmo me acontecia no cinema e até ao ler certos livros ou ao ver um animal sofrer. Nessas alturas esqueço o mundo que me rodeia e vivo intensamente aquilo que vejo e sinto. Pelo contrário, sou insensível à perda do material de guerra e era incapaz de chorar por um carro blindado que ficou na estepe feito em pó pela artilharia... Desta vez choro por ter visto um homem irrepreensível, um soldado corajoso, duro e inflexível chorar como uma criança.
Na terça-feira, com o meu tanque, pus fora de combate dois T-34 que se tinham infiltrado nas nossas linhas. Foi um combate magnífico e impressionante. Momentos depois aproximei-me dos despojos fumegantes. Pendurado para fora da torre um ser humano tinha a cabeça pendida e as pernas juntas e queimadas até ao joelho.
Ainda estava vivo e gemia. Devia ter dores horríveis e não havia possibilidades de o salvar. Mesmo que eu lhe quisesse poupar a vida, ele viria a morrer depois dumas horas de sofrimento pavoroso. Liquidei-o com as lágrimas a correrem-me pelas faces, e há três noites que choro por este Russo que matei. As cruzes que se erguem em Gumrak assinalando as sepulturas dos meus companheiros mortos, arrasam-me os nervos. Tenho medo de nunca mais poder dormir sossegado quando voltar para junto de vós. A minha vida é um contra-senso pavoroso.
Agora durante o dia combato com canhões. Sempre que fazemos fogo há um tanque que fica em chamas. Já fizemos isto a oito e deveríamos chegar à dúzia, mas só nos restam três projécteis. Atirar a tanques é diferente de jogar ao bilhar, e de noite choro como uma criança. Que mais nos espera ainda?»

XXVIII

«Custa-me escrever-te esta carta, tanto quanto te há-de custar a lê-la! Infelizmente não leva boas notícias. Antes de tas vir dar deixei passar dez dias, mas isto não as melhorou. A nossa situação agravou-se de tal maneira que - como eu bem receava - em breve estaremos completamente isolados do mundo. Soubemos há pouco que este é o último correio que daqui sai. Se eu soubesse que ainda havia outro, teria esperado, não dava ainda estas notícias, mas assim, sempre as dou. Para mim a guerra terminou.
Estou no Hospital de Gumrak e espero ser evacuado de avião. Espero com tanta ansiedade esse momento, que me parece que o vejo cada vez mais longe. É para mim uma grande alegria voltar para casa, e para ti também, minha querida mulher. Mas, o estado em que volto é que não te pode dar alegria. E fico totalmente desesperado quando penso em te aparecer inválido - tens de o saber - amputaram-me as pernas.
Vou contar tudo, lealmente. A perna direita ficou completamente esfacelada e foi amputada por cima do joelho: a esquerda por cima da coxa. O médico assegura que com aparelhos poderei andar como qualquer pessoa. É um bom homem, cheio de boas intenções. Queira Deus que diga a verdade! Já sabes tudo. Querida Elise, queria saber o que tu pensas. Não tenho nada que me distraia e passo o tempo todo a pensar nisto. Penso muito em ti, tenho também desejado morrer - é um grande pecado - nem devia dizê-lo.
Nesta tenda, somos mais de oitenta, mas o número dos que estão estendidos lá fora nem tem conta. Através das paredes da tenda ouvem-se os gritos e os gemidos, e ninguém lhes pode valer. Ao meu lado está um tenente de Bromberg com uma terrível ferida no ventre. O médico disse-lhe que em breve voltaria para casa, mas o enfermeiro disse: "Não passa desta noite...nem se lhe toca." Este médico é boa pessoa, apesar de tudo! Do outro lado, entre mim e a parede, está um soldado de Breslau que não tem um braço nem nariz; disse-me que já não precisava de lenços de assoar. Quando lhe perguntei como se arranjava quando chorasse, respondeu-me que aqui já ninguém chora. Que são outros que brevemente chorarão por nós.»

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