domingo, maio 07, 2006

A Crise como subterfúgio

«Os defeitos da democracia política como sistema de governo são tão óbvios, e têm sido tantas vezes catalogados, que não preciso mais do que resumi-los aqui. A democracia política foi criticada porque conduz à ineficiência e fraqueza de direcção, porque permite aos homens menos desejáveis obter o poder, porque fomenta a corrupção. A ineficiência e fraqueza da democracia política tornam-se mais aparentes nos momentos de crise, quando é preciso tomar e cumprir decisões rapidamente. Averiguar e registar os desejos de muitos milhões de eleitores em poucas horas é uma impossibilidade física. Segue-se, portanto, que, numa crise, uma de duas coisas tem de acontecer: ou os governantes decidem apresentar o facto consumado da sua decisão aos eleitores - em cujo caso todo o princípio da democracia política terá sido tratado com o desprezo que em circunstâncias críticas ela merece; ou então o povo é consultado e perde-se tempo, frequentemente, com consequências fatais. Durante a guerra todos os beligerantes adoptaram o primeiro caminho. A democracia política foi em toda a parte temporariamente abolida. Um sistema de governo que necessita ser abolido todas as vezes que surge um perigo, dificilmente se pode descrever como um sistema perfeito.»

- Aldous Huxley, "Proper Studies"

Huxley, além de lúcido, foi profético em muitas coisas. É curioso verificar o frenesim com que nos nossos dias a (des)governação americana inventa crises e inimigos demoníacos a cada esquina, precisamente para invocar, em tons cada vez mais inquietantes, a "suspensão da democracia". A pretexto, por exemplo, do "estado de guerra" (maior crise que a guerra é difícil, convenhamos).
Por outro lado, se atentarmos no historial da própria "democracia portuguesa" pós 25 de Abril, constatamos como a mesma aparece também, quase sempre, submersa em tons de crise, oscilando entre regimes de aflição (o Prec, a Dívida Externa/FMI, os "critérios de Adesão", "o acesso aos Fundos") e compulsões de urgência (o famigerado e sempre-viçoso Défice).
Entre a (des)governação portuguesa e a (des)governação americana existem, de facto, alguns paralelismos ambientais. Só que, enquanto no caso da grande potência, muito providencialmente para os mandantes, a ameaça tem origem externa, no caso português, ou da enorme impotência, o problema reside nas suas próprias entranhas: há todo um povo renitente, atrasado e ineficiente que conspira, perverte e sabota as excelentes medidas - todas elas com carácter de emergência, de primeiro-socorro, de tentativa desesperada de salvação dum moribundo - dos (des)governantes.
Entretidos com uma série de bibelôs, berlindes e roquinhas, Vosselências, porventura, não reparasteis, mas, a Portugal, estão a tentar reanimá-lo desde 25 de Abril de 1974. A burilar noite e dia, de bisturi e serrote, por resgatá-lo às garras venenosas da gangrena. Debalde. Os competentes cirurgiões, em desespero mas estóicos, já tiveram que lhe amputar quase tudo -braços, pernas, rins, pulmões, os testículos... Mas o colapso não regride. Resta uma cabeça de velho tarado, gaiteiro, entrevadinho, dada a mitos e sonhos megalómanos, que uma lobotomiazinha a frio mantém num vítreo e baboso estado larvar.
Visivelmente dispostos a medidas extremas, heróicos, briosos, os mestres retalhadores já demandam na plástica reconstrutiva, na prótese de importação e, sobretudo, na clonagem transexual a solução derradeira.
Ah, beneméritos cientistas!...

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