sábado, abril 22, 2006

Feitios


«Tendo metido a sua moeda na ranhura de uma máquina automática, o Capitão Cap caiu numa terrível cólera ao verificar que nada se mexia no aparelho e que o chocolate anunciado não se apresentava.
- Cambada de ladrões! - espumava ele.
E acrescentou:
- Hei-de vir cá esta noite com uma carga de dinamite e farei ir pelos ares esta maldita máquina.
- Ora aí está, Capitão -disse eu -, uma excessiva vingança para uma desgraçada moeda de dois soldos.
- Não é pelos dois soldos! Estou-me nas tintas para os dois soldos! Não quero é que me f...!
De facto, pouca gente conheci tão susceptível como Cap. em certas alturas.
Pronto a imaginar que toda a humanidade está combinada para o roubar, não abranda na sua ira e rumina sem descanso as mais retumbantes e cruéis desforras.
Ao aperceber-se um dia de que o seu merceeiro lhe vendera uma libra de açúcar com 485 gramas, voltou no dia seguinte e atirou para as azeitonas e as ameixas do indelicado lojista uma mão-cheia de estricnina.
- Não é pelos 15 gramas de açúcar - desculpava-se ele delicadamente. - Estou-me nas tintas para os 15 gramas! Não quero é que me f...!
Numa outra circunstância, as coisas foram até mais longe.
Num hotel de Marselha onde habitualmente se hospedava, verificou ao fazer as malas à partida, que lhe faltava um colarinho postiço.
Não havia dúvida. O criado do hotel, na sua ausência, abrira a mala e roubara-lhe o objecto.
Cap não disse uma nem duas. Em vez de voltar a Paris, onde tinha de ir tratar dos seus assuntos, meteu-se num navio com destino a Trieste.
Trieste -quem não sabe isto? - é, tal como Hamburgo, o grande mercado europeu de animais ferozes.
E logo teve a sorte de ir dar com uma verdadeira pechincha: um jaguar adulto, cujo mau carácter teria feito perder a paciência a um santo e que lhe venderam por um preço irrisório.
Este jaguar foi introduzido numa sólida mala, uma dessas malas em que a chapa de aço desempenha um papel mais considerável que o vime ou a lona encerada.
Um rápido "steam-boat" voltou a trazer para Marselha o rabujento Capitão e o seu feroz companheiro.
O jaguar que, no estado livre, já não é de uma mansidão notável, perde mais ainda a sua sociabilidade com a estada de uma semana dentro de uma mala, mesmo quando o dono tomou a precaução de lá meter, com ele, uma dezena de quilos de carne de cavalo de primeira qualidade.
O nosso jaguar não se portou de maneira diferente da maior parte dos seus congéneres.
E precisamente, o mesmo criado de hotel teve a infeliz ideia de se apropriar de um lenço que pertencia ao nosso amigo.
Então, aí, então...! a tampa da mala levantou-se mais bruscamente do que podia esperar o infiel servidor.
O pobre jaguar, feliz por poder desentorpecer os músculos, manifestou a sua alegria com uma carnificinazinha que abrangeu o culpado criado, duas criadas, três viajantes, o patrão, a patroa do hotel e mais alguns senhores sem importância.
Quando um jaguar se diverte, nada o pode fazer parar.
- Pois bem, senhor - concluia alegremente o Capitão Cap-, venho muitas vezes para este hotel e nunca tive a deplorar a ausência nem mesmo de um botão de punho... Que quer que lhe faça, não suporto que me f...! »

- Alphonse Allais, "Le Captain Cap, Ses aventures, ses idées, ses breuvages"

Moral mais edificante que a deste belíssimo naco de prosa não conheço. Eu sou tal qual assim: Também não é pelas pintelhices. Estou-me nas tintas para as pintelhices. O que eu não gosto é que me f...!


PS: Além de que às venetas do Capitão acrescento, verdadeiro 2 em 1, os caprichos do felino: quando um dragão se diverte, também nada o pode fazer parar.




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