«O aspecto teológico do antijudaísmo na época da Renascença é ainda sublinhado pelo papel que desempenharam então certos recém-convertidos. Acontece-lhes justificar a sua passagem para o cristianismo por meio de acusações lançadas contra a sua antiga fé e contra aqueles que a ela permaneceram fiéis. Em 1392, escreve-se a Henrique de Castela que judeus de Burgos já não ousam retornar a suas casas de aljama com medo de que certos cristãos-novos "os persigam e lhes façam muito mal". Os mesmos factos repetem-se em Perpignan em 1394. Em 1413, Bento XIII, organizando o grandioso "debate" de Tortosa que, acredita ele, provocará a abjuração em bloco de todos os judeus, confia ao converso Josué de Lorca a alta missão de defender o cristianismo contra quatorze rabinos. Um dos baptizados de Tortosa, o jurista Pedro de la Caballeria, redigirá em 1450 um tratado de título significativo, Zelus Christi contra Judaeos, Sarracenos et infideles. Dezoito anos antes dessa publicação, um outro renegado, Pablo de Santa Maria, compusera contra a sua antiga religião uma obra muito violenta, o Scrutinium scripturarum. Outrora primeiro rabi de Burgos, tornando-se em seguida bispo dessa cidade, dom Pablo mostra os judeus fortificados nas suas crenças por seus sucessos em Espanha: daí a sua recusa em acreditar no Messias. Longe de lamentar o papel desempenhado pelos seus ancestrais na condenação à morte de Jesus, eles continuam a blasfemar: crime que se acrescenta aos seus homicídios, adultérios, roubos e mentiras quotidianas. Dom Pablo regozija-se com os massacres de 1391, que vingaram o sangue de Cristo e permitiram a inúmeros judeus descobrir os seus erros e a eles renunciar. No final do século, os conversos (cristãos-novos) são os primeiros a exigir o estabelecimento da Inquisição em Espanha. Ameaçados pelas interdições que os estatutos de pureza de sangue -logo se tratará disso - começam a fazer pesar sobre os judeus-cristãos, estes desejam a denúncia e o castigo dos falsos convertidos. O seu zelo é portanto duplicado aqui por um temor preciso. Ao longo de toda a história europeia, a acção dos neófitos foi nefasta para as comunidades judias. É a israelitas convertidos que os duques de Savóia, em 1417 e em 1466, confiam a tarefa de procurar e destruir nos seus Estados os livros hebreus. Renegado era também o alemão Pfefferkorn que, em 1516, reclama a interdição da usura, a obrigação para os judeus de assistir aos sermões nas igrejas e a supressão do Talmud, provocando o célebre debate com Reuchlin. E igualmente apóstata o pregador italiano Paolo Medici, originário de Livorno: em 1697, publica uma brochura onde reaparece a acusação do "assassinato ritual". Durante quarenta anos, percorre a Itália bradando contra o judaísmo.»
- Jean Delumeau, "História do Medo no Ocidente"
Tentem enquadrar nisto a tese fabulosa da senhora Micznik e depois falamos.
Para essa senhora a realidade não interessa para nada se se conseguir manipular as consciências. «When the legend becomes a fact, print the legend», já dizia alguém.
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