Em 17 de Junho de 1976, aquando da sua primeira candidatura a Belém, o General Ramalho Eanes, em Évora, terá sido alvo dum misterioso e deveras conveniente atentado. Soaram disparos, houve feridos, um morto, e esse episódio serviu de emblema e impulso decisivo a toda uma campanha que culminaria com a sua eleição para Belém (em detrimento, sobretudo, de Pinheiro de Azevedo).
Mas o que tem piada, raiando o hilariante, é a descrição que o jornalista Augusto Cid faz do incidente no seu livro “Camarate”. Não deixa de ser um pouco extensa, mas vale a pena ler. E fica como mais um testemunho do anedotário em que se converteu este país... Leiam, que vale a pena. Garanto-vos.
«(...) Uma equipa de reportagem da RTP, providencialmente presente no local, registaria para a história o comportamento do destemido militar, que indiferente aos tiros trepara para o tejadilho da sua viatura e oferecia generosamente e com galhardia o peito às balas enquanto a viatura em que se fazia transportar não abrandava a marcha. Transformado assim em alvo móvel, o candidato a locatário do palácio de Belém teria ainda tempo suficiente para, da sua posição privilegiada, dar uma boa olhadela aos seus cobardes atacantes, que o “rigoroso inquérito” imediatamente ordenado nunca viria a identificar!
“Eram tipos com bastante experiência”, explicava para as câmaras da televisão dias depois o candidato, já promovido definitivamente a herói nacional e totalmente recuperado do “incidente”. “Vi-os distintamente. Dispararam da posição de tiro instintivo, para depois enrolarem em cambalhota e voltar a disparar. Trata-se de profissionais”, assegurava convicto a “vítima” dos “atiradores profissionais”, os quais não haviam logrado acertar num excelente alvo que, de pé sobre uma viatura, se deslocava lentamente e a escassos metros de distância.
O País ainda hoje desconhece em absoluto não só as conclusões do “rigoroso inquérito” como a identidade dos atacantes e se alguma vez chegaram a ser apresentados aos tribunais e qual a pena que lhes foi aplicada por tentativa de homicídio na pessoa de um candidato a Presidente da República. Dos misteriosos assaltantes fica-nos apenas a certeza de que, tratando-se de péssimos atiradores, eram contudo excelentes ginastas e especialistas em cambalhotas e fliques-flaques, executados enquanto disparavam... Sem pretender intrometer-me em mais um “rigoroso inquérito”, atrevia-me a lançar um palpite que talvez venha ainda a tempo de fazer alguma luz sobre o “lamentável incidente” e de prestar uma valiosa ajuda aos incansáveis investigadores que, de há oito anos a esta parte, se vêm debatendo com problemas insolúveis - o candidato Ramalho Eanes escapou às balas assassinas justamente porque os atiradores decidiram executar em simultâneo com os disparos uma exibição de ginástica de grande efeito, que viria a merecer, inclusivamente, a aprovação e o aplauso do próprio visado nesse “incidente”; a dificuldade em disparar com alguma eficácia ao mesmo tempo que se executam cambalhotas em frente e à retaguarda teve como consequência inevitável que os tiros tivessem acertado em todos menos no alvo que se propunham atingir... É com toda a humildade e sincera vontade de colaborar que aqui deixo este contributo para o “rigoroso inquérito” que, suponho, continua em curso. O estranho facto de os elementos de segurança do candidato surgirem nas fotografias divulgadas na ocasião pendurados fora da viatura e agarrados às pernas do general Ramalho Eanes pode ter várias explicações, as quais me limito a enunciar, na certeza de que a esforçada Comissão de Inquérito não deixará de escolher aquela que lhe parecer mais adequada às circunstâncias:
1) O candidato não subiu para a viatura, antes foi lá colocado pelos seus elementos de segurança, que, para se assegurarem de que ele não fugia, o agarraram fortemente pelas pernas;
2) O candidato estava colado ao tejadilho da viatura, e os elementos de segurança agarraram-se às suas pernas por forma a não caírem da mesma;
3) Os elementos de segurança seguravam o candidato pelas pernas para evitar que ele se fosse abaixo no caso de ser atingido por alguma bala e deitasse a perder a sua imagem de invulnerabilidade;
4) O candidato tinha por costume viajar sempre de pé sobre a viatura, por lhe ter sido atribuído um número exagerado de elementos de segurança, que ocupavam todo o espaço útil dentro do veículo; os homens de segurança limitavam-se a assegurar o equilíbrio precário do candidato nas curvas e lombas da estrada;
5) O candidato, na realidade, viajava disfarçado no banco traseiro da viatura, e a figura colocada no tejadilho não passava de uma réplica perfeita do general Ramalho Eanes encomendada a uma fábrica de manequins; os elementos de segurança do candidato tinham por missão assegurar que o manequim não tombava da viatura, o que denunciaria a farsa;
6) Os elementos de segurança do candidato preocuparam-se, sobretudo, em proteger os pés e os tornozelos do general, dado que era aí que residia o seu ponto fraco, vulgarmente conhecido pela designação de “calcanhar de Aquiles”;
7) Por último, o “incidente” poderia ter sido cuidadosamente planeado e integrado numa original campanha publicitária de lançamento das desportivas camisas Fórmula 1, que seriam a escolha acertada e preferida do verdadeiro homem de acção; é bem provável que, a ter-se verificado esta circunstância, o “modelo” fosse de todo alheio à iniciativa...
A trágica comédia levada à cena em 17 de Junho de 1976, tendo como pano de fundo a serena paisagem alentejana, parece ter tido como objectivo primordial confirmar a imagem do herói nacional anticomunista que as largas faixas conservadoras ansiavam que surgisse depois da traumática experiência das “amplas liberdades” tinham emprestado à governação do País. (...)»
- Augusto Cid, "Camarate"
Mas o que tem piada, raiando o hilariante, é a descrição que o jornalista Augusto Cid faz do incidente no seu livro “Camarate”. Não deixa de ser um pouco extensa, mas vale a pena ler. E fica como mais um testemunho do anedotário em que se converteu este país... Leiam, que vale a pena. Garanto-vos.
«(...) Uma equipa de reportagem da RTP, providencialmente presente no local, registaria para a história o comportamento do destemido militar, que indiferente aos tiros trepara para o tejadilho da sua viatura e oferecia generosamente e com galhardia o peito às balas enquanto a viatura em que se fazia transportar não abrandava a marcha. Transformado assim em alvo móvel, o candidato a locatário do palácio de Belém teria ainda tempo suficiente para, da sua posição privilegiada, dar uma boa olhadela aos seus cobardes atacantes, que o “rigoroso inquérito” imediatamente ordenado nunca viria a identificar!
“Eram tipos com bastante experiência”, explicava para as câmaras da televisão dias depois o candidato, já promovido definitivamente a herói nacional e totalmente recuperado do “incidente”. “Vi-os distintamente. Dispararam da posição de tiro instintivo, para depois enrolarem em cambalhota e voltar a disparar. Trata-se de profissionais”, assegurava convicto a “vítima” dos “atiradores profissionais”, os quais não haviam logrado acertar num excelente alvo que, de pé sobre uma viatura, se deslocava lentamente e a escassos metros de distância.
O País ainda hoje desconhece em absoluto não só as conclusões do “rigoroso inquérito” como a identidade dos atacantes e se alguma vez chegaram a ser apresentados aos tribunais e qual a pena que lhes foi aplicada por tentativa de homicídio na pessoa de um candidato a Presidente da República. Dos misteriosos assaltantes fica-nos apenas a certeza de que, tratando-se de péssimos atiradores, eram contudo excelentes ginastas e especialistas em cambalhotas e fliques-flaques, executados enquanto disparavam... Sem pretender intrometer-me em mais um “rigoroso inquérito”, atrevia-me a lançar um palpite que talvez venha ainda a tempo de fazer alguma luz sobre o “lamentável incidente” e de prestar uma valiosa ajuda aos incansáveis investigadores que, de há oito anos a esta parte, se vêm debatendo com problemas insolúveis - o candidato Ramalho Eanes escapou às balas assassinas justamente porque os atiradores decidiram executar em simultâneo com os disparos uma exibição de ginástica de grande efeito, que viria a merecer, inclusivamente, a aprovação e o aplauso do próprio visado nesse “incidente”; a dificuldade em disparar com alguma eficácia ao mesmo tempo que se executam cambalhotas em frente e à retaguarda teve como consequência inevitável que os tiros tivessem acertado em todos menos no alvo que se propunham atingir... É com toda a humildade e sincera vontade de colaborar que aqui deixo este contributo para o “rigoroso inquérito” que, suponho, continua em curso. O estranho facto de os elementos de segurança do candidato surgirem nas fotografias divulgadas na ocasião pendurados fora da viatura e agarrados às pernas do general Ramalho Eanes pode ter várias explicações, as quais me limito a enunciar, na certeza de que a esforçada Comissão de Inquérito não deixará de escolher aquela que lhe parecer mais adequada às circunstâncias:
1) O candidato não subiu para a viatura, antes foi lá colocado pelos seus elementos de segurança, que, para se assegurarem de que ele não fugia, o agarraram fortemente pelas pernas;
2) O candidato estava colado ao tejadilho da viatura, e os elementos de segurança agarraram-se às suas pernas por forma a não caírem da mesma;
3) Os elementos de segurança seguravam o candidato pelas pernas para evitar que ele se fosse abaixo no caso de ser atingido por alguma bala e deitasse a perder a sua imagem de invulnerabilidade;
4) O candidato tinha por costume viajar sempre de pé sobre a viatura, por lhe ter sido atribuído um número exagerado de elementos de segurança, que ocupavam todo o espaço útil dentro do veículo; os homens de segurança limitavam-se a assegurar o equilíbrio precário do candidato nas curvas e lombas da estrada;
5) O candidato, na realidade, viajava disfarçado no banco traseiro da viatura, e a figura colocada no tejadilho não passava de uma réplica perfeita do general Ramalho Eanes encomendada a uma fábrica de manequins; os elementos de segurança do candidato tinham por missão assegurar que o manequim não tombava da viatura, o que denunciaria a farsa;
6) Os elementos de segurança do candidato preocuparam-se, sobretudo, em proteger os pés e os tornozelos do general, dado que era aí que residia o seu ponto fraco, vulgarmente conhecido pela designação de “calcanhar de Aquiles”;
7) Por último, o “incidente” poderia ter sido cuidadosamente planeado e integrado numa original campanha publicitária de lançamento das desportivas camisas Fórmula 1, que seriam a escolha acertada e preferida do verdadeiro homem de acção; é bem provável que, a ter-se verificado esta circunstância, o “modelo” fosse de todo alheio à iniciativa...
A trágica comédia levada à cena em 17 de Junho de 1976, tendo como pano de fundo a serena paisagem alentejana, parece ter tido como objectivo primordial confirmar a imagem do herói nacional anticomunista que as largas faixas conservadoras ansiavam que surgisse depois da traumática experiência das “amplas liberdades” tinham emprestado à governação do País. (...)»
- Augusto Cid, "Camarate"
PS: Entretanto, deixo aqui uma pergunta: Que "incidente" determinante vai acontecer nestas eleições, provavelmente para forçar a uma segunda volta?...
Estou de camarote e aguardo o início da peça com grande expectativa...
Esse é o "grande" General que não sabia nada da Casa Pia...
ResponderEliminar;)
Já ocorreu um remake em 1986, mas nesse ano, devido à forte crise que o país vivia, não houve dinheiro para armas, nem balas, só uns tabefes na Marinha Grande, que fica mais próximo de Lisboa, pois não havia dinheiro para a Gasolina.
ResponderEliminarQuase que ocorreu, em Viseu.
ResponderEliminarIsto quando o m.s. entrou na provocação, num café do Rossio. Não ficaria admirado se voltar a insistir.
O Dragão deixa a pergunta no ar, mas dá impressão que já tem uma ideia para a resposta...
ResponderEliminarO único incidente digno desse nome seria um formidável terramoto com tsunami à mistura.
ResponderEliminarFalecia toda a gente (inclusivamente os candidatos)e finalmente esta terra descançava em Paz - por uns tempos claro.