A explicação cínica e retórica de que é assim porque sempre foi assim, pode parecer imbuída de mundana sapiência e comprovada experimentação, mas não convence. O "não pensar mais nisso" é só mais um capítulo, deveras prestigiado, do "não-pensar". Este, por seu turno, constitui-se como departamento proeminente do "Não Querer Saber", o qual, por sua vez, agrega e combina o "não querer eu saber" e o "não querer que se saiba", e decorre duma certa conveniência superlativamente mundana, mas completamente acósmica. Quanto à melhor forma do "eu não saber", ou pelo menos a mais praticada, reside na convicção e conversão permanente ao "não existir" do que não se quer saber, nem que se saiba –não estar presente, não ter conhecimento –, ou, mesmo que remotamente exista, "não ser do nosso conhecimento". Parece uma charada, mas não é. Basta acender-se a televisão, e ei-lo que jorra, profuso, recorrente, entre debates e telejornais.
Aliás, é tanto menos charada quanto o próprio percurso Ocidental pós-Helénico se pode efectivamente traduzir como uma fuga à pergunta e, consequentemente, à demanda em que consiste a "sabedoria". Se atentarmos no conceito de "filósofo" grego e no conceito de "sábio" actual, a diferença é, por si só, amplamente esclarecedora. Dum lado o "amor a"; do outro a "posse de": O filósofo antigo é aquele que ama, que acompanha, que aspira e busca a sabedoria; o sábio actual – Globtrotter, erudito, expert, doutorado, premiado, carreirista, capelão, autoritário, burguês –, ao contrário, é aquele que domina, que possui, que debita. Debitar, refira-se, no preciso sentido em que, a cada instante, lavra o nosso débito e aumenta o seu crédito, enfim, trafica e transacciona o seu saber (o seu produto ou mercadoria). Cremos piamente nele –creditamo-lo; e ele debita-nos o seu saber –cobra-nos, quer dizer, salda e põe cobro a todas e quaisquer dúvidas, angústias ou reminiscências. Em suma: um turbo-sofista ou dinociente. A coisa não anda longe da banha ou unguento milagrosos, lendárias panaceias à mão de semear. Tudo o que há para saber, que é possível e conveniente saber em dado momento, ele sabe, explica. Não para que se compreenda, estime ou contribua para qualquer melhoria significativa do nosso espírito, mas para que não se pense mais nisso, ou mais exactamente, para que se continue a não pensar nisso. Pertence também ao corpo de massagistas da Opinião Pública. Anseia e esforça-se por um tempo de antena ou espaço na notícia. Congrega, como qualquer estupefaciente moderno, uma mescla explosiva de propriedades anestésicas e aceleradoras. Um narco-paroxíntico, em suma. Caso, por algum azar enigmático, ainda não nos encontremos debaixo dos seus efeitos, depara-se-nos, então, um mundo de pródiga bizarria onde o pensamento, no seu simulacro autorizado, se treina em ginásios especializados na musculação de espíritos. O quadro é de tal ordem – os ditos espíritos, suados para a alta competição, tão indistintos das pernas –, que, depois de o vermos, sobrevem a náusea fatal daquele que preferia nunca ter visto. A quadrupedia, substancialmente vantajosa em se tratando de correria, está pois na moda, sendo agora mental. O treino e perseverante adestramento não descansa mesmo enquanto as sublimes performances e recordes que as promissoras desmultiplicações dos octópedes e miriápodes não forem alcançadas. Esta dromopedia mental, levada a cabo por cérebros herculíneos à desfilada por pistas olímpicas, reflecte na íntegra essa "ectosofia" que redunda, sem dó nem piedade, na "paranóia". Simultaneamente, é o pensamento-força, obra de músculo que se impõe ao pensamento-ideia, acto de espírito. É o triunfo do pensamento latejante, culturista, anabolizado; e o descrédito em toda a linha desse anacronismo simbolizante, famélico, descarnado, quixotesco. Concluindo: a fuga à pergunta, o exílio da sabedoria descambam fatalmente num pensamento prótese, catalizador, turbo-compressor, só que, na verdade, um pensamento fora de si, desiquilibrado – não do homem para o Homem, mas do mundo para o mundo –e, a limite, do mundo contra o ser do Homem. De resto, a crise actual já nem configura a adaptação do Cosmos ao homem, mas antes deste ao seu próprio mundo. Criado o monstro Frankenstein, este, animado do espírito do criador, ainda desponta e já descobre, lamenta e se propõe corrigir a monstruosidade daquele que o criou. A besta artificial fará, assim, ao homem, o que o homem fez ao cosmos. Lembra a "athé" grega, a lei implacável da retribuição cósmica: o mal que alguém desencadeia é o mal que lhe há-de caber em sorte; o excesso autocorrige-se. O mal é sempre o mal de si próprio.
Espectacular.
ResponderEliminargrande texto!
ResponderEliminarMais um bafo incinerador, pondo a nu a realidade nua e crua do pensamento contemporâneo ocidental, vítima da hipnose positivista.
ResponderEliminarUm portento, este Dragão.
"...o excesso autocorrige-se."
ResponderEliminarCuidado!!
Olhe que lhe podem dizer que:
"...o mercado autoregula-se."
:o)
Em 2050 não mais haverá países.
pelo menos não os 'escandalosos' 180 que agora existem.
Seremos todos cidadãos da Federação Mundial, que terá capital ali algures entre Aberdeen e Edinburgo.
A magnífica Escócia, terra de bardos e lendas, é a 'sede' da 'emanação' já há uns largos séculos.
É lá que reside o saber...e mais a 'gregalhada' toda.
(ou serão os romanos?)
Afinal de contas, é lá que está o Graal (e outros canecos) e, most important é lá que está a 'linhagem' de Cristo.
Amén.
Penso que não. Será mais na Lapónia, onde reside o Pai Natal.
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ResponderEliminarBest wishes.
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