O regime opinioso, mais que intempestivo, é mesmo de diluviana intempérie: de todos os pontos e quadrantes chovem grossas bátegas opinativas, abatem-se conjecturas e palpites. Opinar tornou-se, inclusivé, profissão importantíssima, sucedâneo dos sábios do antanho.
Escrita, falada, tele ou radiodifundida, ao telefone ou pintalgada em cartazes, nas paredes como nos urinóis, a opinião governa o mundo. Uma doxocracia avassaladora! E mais que preocupações com uma ortodoxia ou heterodoxia dominantes, vigora uma demodoxia, ou seja, o circus maximus da Opinião Pública. Onde mesmo os mega-poderosos se submetem aos caprichos da turba. Porque, ao contrário do monismo da Verdade ou da profundidade da Sabedoria, a opinião é volúvel, volátil, saltitante, aérea, consequência imprevisível do cruzamento fortuito entre o colibri e a rameira. Acompanha e promove a agitação febril que tanto apraz e convém à humanidade blobglob. É o coroamento das correrias através da efervescência. As mentes fermentam e fer-mentem. Qual sacudir canino após o banho, salpicam em todas as direcções. Encharcam. Turba, já desde o latim, tanto quanto agitação, quer dizer ruído, algazarra, gritaria. Ora, é precisamente isso que mede, doravante, a eficácia da opinião: a quantidade e o volume da algazarra, do chinfrim que produz ou promove. A doxocracia é também turbacracia: turbilhão de microegoísmos, nanoideias e miniconceitos, amplificados, guinchados electricamente até ao ensurdecimento. Transmitidos e vulgatizados até ao enjoo.
A idade da turba é igualmente a idade do turbo: a opinião é veloz, fugaz, instantânea. Nada semelhante à verdade ou à sabedoria, tartarugas lentas e anquilosadas que nunca saem do mesmo sítio. A opinião é a lebre que nunca dorme; é a esperteza a rir da inteligência; é a máquina formidável que passa célere e deixa o peão petrificado, enlameado e ultrapassado na esquina da civilização.
Pletórica de vantagens inauditas, a opinião não afirma, sugere; não nega, desvaloriza; não analisa, conversa; não reflecte, atropela. À semelhança do seu portador, não tem tempo para mais que esfregar-se felinamente nos assuntos.
Etimologicamente poderá não o ser, mas de facto a opinião é o ob-pino, quer dizer: o estar em cima, estar por cima, estar no alto, no topo, no cume. O opinador está por cima de tudo, em cima de todo e qualquer acontecimento ou assunto. A realidade passa desenfreada, feita cavalgadura brava a espinotear em rodeo, mas ele é jockey magnífico, carraça excelente e não a larga, aninha-se aracnídeo nos seus solavancos e escoicinhaduras. Não só a monta: cheira-a, respira-a, desfila colado nela. O facto retumbante de estar por cima de tudo, permite-lhe debruçar-se sobre tudo. Limites ou barreiras não o afectam. Vergonha ou pudor são requintes que não só desconhece, como também despreza. Na verdade, à sua medida canina e mesquinha, copia e macaqueia Deus. Replica o Verbo através da ventosidade oradora - mais que iluminante - iluminada. Só que, ao contrário da criação divina, que partia de uma ordem e se constituía numa ordenação, o verbo opinante não ordena, comenta. Ou ilustra, legenda, actualiza. As coisas do mundo não o afectam, nunca são suas. São como autocarros sujos que não frequenta. Não entra para dentro deles. Pois o seu comentário nunca é de dentro, mas de cima. Sobrevoa supersónico. Quando se digna poisar, fá-lo com a distância própria das precipitações celestes: a leveza do floco de neve que desce desde o alto, vagaroso, numa catalepsia purificadora, até cobrir toda a superfície sob um manto de alvura imaculada.
No Doxa-World, dos media em permanente revolução no chiqueiro noticioso, o comentário refaz o mundo: do espanto, da inquietação, da tragédia, da perplexidade. Presta-lhe os primeiros socorros, coloca-o na posição lateral de segurança, pronto a ser evacuado. É uma respiração boca a boca com o momento ou com a notícia. Nesse mundo clinicamente refeito, a expedita demiurgia opinadora configura-se como retórica transcendente, inefável, ou melhor dizendo, estrepitante pirotecnia celeste. Não faz, recupera. E, no entretanto, distrai, convence (nomeadamente o paciente, de que tudo não passa de imaginação sua). É uma cura psicológica - mais que multiusos - panta-utilizações. Uma espécie de banha-da-cobra espiritual. Através dela, o opinorreico comentarista, ilustre ruminante, fenomenal mastigador, sujeita o mundo à reciclagem permanente: Após uma breve passagem pelo seu filtro mágico, o velho devém novo, o obscuro torna-se claro, o espantoso ingressa na banalidade quotidiana. Nessa medida, ele, o comentarista, é uma espécie de explicador universal, implacável exterminador de dúvidas e triturador de incertezas. Talvez Deus tenha criado o mundo, mas o opinador agora comenta-o -quer dizer, acompanha-o clinicamente.
No fundo, bem no fundo, é a prova viva de que, se calhar, Deus, no momento inaugural, não disse "fiat lux"... Disse:" foda-se! "
Um mundo com coisas destas não pode ser fruto da refulgente Palavra; só pode ser extracto de um bem mais cavernoso Palavrão!...
genial conclusão, genial!
ResponderEliminarGenial mesmo. E brilhante! Tem você o dom de tão bem explanar o que alguns de nós, fiéis frequentadores desta boa casa, pensam.
ResponderEliminarE com que regalo o leio!...