segunda-feira, setembro 20, 2004

Um português intemporal

Da sua biografia não se sabe muito. Ao certo, pensa-se que nasceu por volta de 1465. Mas Gil Vicente é Gil Vicente. Não imita gregos nem troianos. Se Camões, ao reino, lhe puxa o lustro, Gil Vicente, segurando-o por pinças, mostra-lhe o espelho. Mas, como em toda a obra de génio, não é um espelho que abarque apenas o rosto, a figura e a indumentária. Vai mais fundo: abarca o mundo, abarca a alma, a vida e a morte.
No século XVI, esse século da descrença, reina o gigante Pantagruel de Rabelais e andam à solta os diabos de Vicente. Cínicos, sarcásticos, impiedosos, estes, ainda hoje assolam o país e o mundo. São intemporais, habitam a alma humana, como intemporal é a obra desse nosso ilustre compatriota, remetida a um mui conveniente esquecimento por parte daqueles que ainda hoje, diante do espelho, sairiam retratados na perfeição.
Num país de poetas, poetinhas e poetizas, é a própria poesia que sai brindada com um valente pontapé no cu. O qual, refira-se, lhe assenta muito bem.

«Entra hum Diabo com uma tendinha diante de si, como bufarinheiro, e diz:

Diabo:
Eu bem me posso gabar,
e cada vez que quiser,
Que na feira onde eu entrar
Sempre tenho que vender
E acho quem me comprar.
E mais vendo muito bem,
Porque sei bem o que entendo;
E de tudo quanto vendo
Não pago siza a ningém
por tratos que ando fazendo.
Quero-me fazer à vela
Nesta sancta feira nova.
Verei os que vem a ell,
E mais verei quem m’estrova
De ser eu o maior della.

Tempo:
Es tu também mercador
Que a tal feira t’offereces?
Diabo:Eu não sei se me conheces
Tempo:Falando com salvanor,
Tu diabo me pareces.
Diabo:
Fallando com salvos rabos,
Inda que me tens por vil,
Acharás homens cem mil
Honrados, que são diabos,
Que eu não tenho nem ceitil,
E bem honrados te digo,
E homens de muita renda,
Que tem divedo comigo.
Pois não me tolhas a venda
Que não hei nada contigo.
Tempo (ao Seraphim):
Senhor, em toda maneira
Acudi a este ladrão
Que ha de danar a feira.
Diabo:
Ladrão? Pois haj’eu perdão,
Se vos meter em canseira.
Olhae ca, anjo de bem,
Eu, como cousa perdida,
Nunca me tolhe ninguem
Que não ganhe minha vida,
Como quem vida não tem.
Vendo dessa marmelada
E ás vezes grãos torrados,
Isto não releva nada;
E em todolos mercados
Entra a minha quintalada.
Seraphim:
Muito bem sabemos nós
Que vendes tu cousas vis.
Diabo:
Hi ha de homes ruins
Mais mil vezes que não bôs,
Como vós mui bem sentis.
(...)
E mais as boas pessoas
São todas pobres a eito;
E eu por este respeito
Nunca trato em cousas boas,
Porque não trazem proveito.
Toda a glória de viver
Das gentes hé ter dinheiro,
E quem muito quiser ter
Cumpre-lhe de ser primeiro
O mais ruim que puder.»

- Gil Vicente, “ Auto da Feira”

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