Neste nosso mundo admirável, o asseio corporal vai de vento em popa. Os cuidados do indígena com a sua pele, o cabelo, as unhas, os sovacos sobretudo, multiplicam-se. A indústria socorre-o, solícita, duma miríade de produtos e gadgets. Sabonetes, perfumes e desodorizantes, em catadupa, estão de piquete diário e prevenção. A publicidade, em débito evangelizador, lembra, a cada instante, da urgência da tarefa, promove-a a verdadeira compulsão benigna. O dia divide-se em várias corridas à lavagem. Como antigamente se corria à oração, hoje corre-se ao lavatório: Antes das refeições, depois das refeições; ao levantar, ao deitar; antes da queca, depois da queca; etc,etc. Os próprios legisladores não o esquecem: qualquer dia, por lei, as casas deverão possuir três WCs, com jacuzzi, sauna e banhos turcos à descrição. A gadeza, por directiva comunitária, quer-se limpa e escovada. A civilização é isto.
Só é pena que estes cuidados higiénicos com o corpo, de todo utéis em se tratando de suínos, cresçam na medida inversa aos cuidados higiénicos com o espírito. De facto, quanto mais passam o coiro pela água, mais banham o espírito na pocilga. Este aparente paradoxo, todavia, não deixa de ser justificado com toda a facilidade pelos grunhidores intérpretes : “o espírito está no cérebro e nós lavamos o cérebro todos os dias!”. (Não deixa de ser verdade –a segunda parte, seguramente). Outros, mais radicais, proclamam: “O espírito não existe, ou se existe, não se vê, portanto, não interessa, podemos ser badalhocos que ninguém nota!...”
É natural que o espírito não se veja. Que cada vez se veja menos. Jaz soterrado debaixo de várias camadas de surro, sebo luzidio e lixo. Na maior parte dos casos, um autêntico palimpsesto de merda.
Ontem vim aqui e deixei um comentário. Desapareceu, pelos vistos. Era um comentário pedante sobre o sarro das dornas de vinho que guardam ideias que ninguém aproveita.
ResponderEliminarDizia então no comentário perdido que as ideias originais eram como os vintage ou a ambrósia: por cada copo, uma pessoa bebe pipas de zurrapa.
Por outro lado, embrulham-se as ideias, muitas vezes, no surrobeco da apresentação descuidada ou no vison da revista lustrosa.
Terminava, perguntando-me para que servia estar para a aqui num exercício de pedantismo, quando as ideias são como as cerejas: atrás de umas vem outras e algumas estáo verdes.
Não foi bem assim que ontem escrevi, mas isto já é um palimpsesto.
Bem regressado!