terça-feira, agosto 17, 2004
O Aroma da Revolução
Não conheço aldrabice mais rançosa que a retórica das revoluções. Fala-nos de longos processos de resistência, de lutas e campanhas heróicas, de estoicismos e tenacidades sobrehumanas. A revolução é só o auge, o climax, o culminar dessa fermentação sublime; é só esse Big-bang final em que se reinicia e refunda o cosmos. Que grande balela! Que cegarrega para embalar meninos!...
Eu, um raio me parta, não acredito em revoluções.
Para não acreditar em revoluções não é preciso uma grande dose de cinismo, desilusão ou cagaço. Basta ter nariz e sentido de olfacto. Os olhos e os ouvidos enganam facilmente, mas o nariz não. Aquilo nunca cheira a perfume, a primavera regeneradora. Ou se cheira é só para mascarar o fedor nauseabundo a organismos em processo terminal de putrescência , a cadáveres em adiantadíssimo estado de decomposição. Quando um prédio desaba podemos concluir que lhe aconteceu uma revolução, porque não? É justo. É assim. É até uma boa analogia. Também acontece às pessoas, aos povos, se calhar até às civilizações. Envelhecem, arruinam-se, perdem o vigor, a vontade, por fim, a verticalidade, o movimento próprio, e deitam-se, a definhar, a mirrar, a apodrecer... e morrem. Curiosamente, à medida que morrem, tornam-se palco duma sobreactividade crescente, frenética, alucinante: uma infinidade de insectos e vermes banqueteia-se, tira a barriga de misérias, empaturra-se, com alarvidade impune. Nada se perde; depenam e petiscam até aos ossos. Regalam-se primeiro nos olhos e vísceras. Revezam-se e acotovelam-se (se cotovelos tivessem), dia e noite. E se o sol lhe dá, se a luz quente não lhes falta e incide de feição, pior um pouco. Chega a ser horripilante. Mas o pior é o cheiro. Capaz de nos pôr aos vómitos, aos arranques de cuspir bílis.
Temos o hábito de enterrar as pessoas, para não termos que assistir a todo este deplorável e macabro processo (e, sobretudo, para não termos que inalar tão inenarráveis odores). Diz-se até que é uma questão de saúde pública. A mesma repugnância, todavia, não nos atormenta, em se tratando, por exemplo, dum país ou civilização.
A única explicação que me ocorre tem a ver com a perspectiva: no primeiro caso é externa, exoscópica; no segundo é de dentro, endoscópica. A distância que vai do assistir ao protagonizar.
Esta teoria nem sequer é minha. Eu limito-me a concordar, em grande parte, com ela.
Nas revoluções, não são heróis que triunfam. Nem nunca foram. São apenas as formigas, as varejeiras e outros micro-necrófagos oportunistas. É por isso que as revoluções não se convocam, nem se planeiam: surgem, irrompem, eclodem. Como corolário não de fermentações regenerativas, redentoras, mas de putrefacções e caruncho, de esclerose e atrofia.
Quereis ver revoluções? Ide aos hipermercados, às grandes superfícies comerciais!...
Vereis lá estampado a última versão do “cogito” cartesiano: “compro, logo existo”. E a liberdade toda do mundo para terdes cada vez mais necessidades. Fora isso, há o cheiro, um fedor subjacente, rarefeito, que vos transportaria à náusea mais profunda, se a hipertrofia, deslumbrada e pacóvia, dos olhos não vos tivesse atrofiado irremediávelmente, e quiçá para todo o sempre, o olfacto e o nariz.
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