Compreender os factos está muito para lá do burburinho comentarista e da desinteria opinativa à volta ou a propósito das notícias. A notícia não relecte necessariamente a realidade, mas resume invariavelmente uma determinada perspectiva ou manipulação dessa realidade. Quase sempre, redu-la; quando não a substitui, pura e simplesmente.
A multidão age - ou melhor, reage à notícia, enredada na confusão que a assoberba: tomando-a por informação. Num tempo em que o aparecer substitui o ser, isso não choca, nem preocupa. A voracidade doxofágica da turba é simultaneamente desintérica: o espaço que vai da boca ao reto não é mediado por qualquer tipo de digestão. Engolem e defecam por inteiro.
E todavia, os factos, como os frutos das árvores, têm raízes. Entendê-los é perceber todo um organismo que se sustenta para lá da rama do quotidiano.
O que de seguida se transcreve, consta do livro "Dans les Secret des Princes", no qual Christine Ockrente entrevista o Conde de Marenches. Alexandre de Marenches -que, nas curiosas palavras da entrevistadora, "não é de esquerda, recusa a direita, não é um intelectual, nem um político, nem um mundano, mas um homem de reflexão e de acção" -, foi Chefe dos Serviços Secretos Franceses (S.D.E.C.E) entre 1970 e 1981.
«O. - (acerca do Xá da Pérsia) Disse-lhe por exemplo: "tome atenção, os mollás agitam-se nas suas províncias!"?
M. - Disse, e disse-lhe também: "Atenção ao bazar". Disse-lhe sobretudo: "Atenção à administração Carter!" preveni-o de que essa personalidade inábil sobre o plano nacional e internacional que era o presidente Carter, tinha decidido substitui-lo. O presidente americano era totalmente ignorante quanto às realidades do Próximo e do Médio-Oriente, e quanto às iranianas, entre outras. Durante a curta vida desta personagem-escuteiro de cara afectada que mal saberia onde era o Irão, o Xá foi considerado um mesquinho ditador que metia as pessoas na prisão e, por isso, havia que implantar ali, o mais depressa possível, o sistema democrático à moda dos E:U:A. Suponho que nunca ninguém ensinara ao hóspede da Casa Branca a regra de ouro do Oriente: "Beija a mão que não podes cortar".
Mencionei um dia ao Xá o nome daqueles que, nos Estados Unidos, estavam encarregados de tratar da sua saída e da sua substituição.
Estive até presente numa reunião em que um dos assuntos abordados foi: "Como é que vamos actuar para obrigar o Xá a partir e por quem o vamos substituir?".
O Xá não me quis acreditar. Disse-me: "Acredito em tudo o que me diz, menos nesse ponto. -Mas Alteza, porque é que não me acredita também quanto a esse ponto? - Porque seria tão estúpido substituir-me! Eu sou o melhor defensor do Ocidente nesta região do mundo. Possuo o melhor exército. Sou eu quem detém o maior poder." Acrescentou: "Seria tão absurdo que não posso acreditar!" Após algum silêncio em que reflecti sobre o que lhe ia responder, disse-lhe: "E se os americanos estão enganados?"
Foi o que se passou. Os americanos tomaram a sua decisão. Como sempre, tinham uma visão do país correspondente à dos iranianos com quem conviviam: os que saíam de Harvard, de Stanford ou da Sorbonne e que representavam menos de um por cento da população. Tanto nos Estados Unidos como na Europa, ninguém imaginava que o povo iraniano era composto por pessoas que viviam no século XI. Teriam feito melhor em desistir das recepções -onde nada se aprende e onde só se apanham doenças de fígado - para viver em contacto com os pequenos comerciantes e camponeses. Induzi os meus representantes a seguir essa regra.»
O que, quanto a mim, mais releva destas memórias, é a clara descrição do modus-operandi tipicamente americano: uma mescla de esperteza saloia com irresponsabilidade mentecapta; em suma: a geopolítica novo-rica, essencialmente superficial e caprichosa. A mesma que, com a agravante de intuitos desabridamente hegemonizantes a cavalo em pretextos e contornos nebulosos, presidiu à actual intervenção no Iraque.
A História, apesar de tudo, julgará, daqui a muitos anos, se afinal, os Estados Unidos foram, em grande parte da sua história, factor maior de estabilização ou de instabilização planetários.
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