Esta coisa do D.Afonso Henriques andar ao leme do Batnavó, apesar do cutelo, não tem só desvantagens. Não, também tem algumas contrapartidas. A tasca -aliás, Ciber-tasca-, por exemplo, parece ter viajado no tempo, sendo que eu e o Dinossauro fomos armados cavaleiros e o Caguinchas agora é conde. Já o Armindo Taberneiro, que D.Afonso não vê com tão bons olhos, manteve-se plebeu, mas com o alvará, por concessão régia, de armeiro-real e Guardião-das-armas. Estas, as armas, resumem-se por enquanto ao cutelo, mas D.Afonso já lançou olhares gulosos ao martelo de picar carnes, que o Armindo tratou de esconder como pôde.
Foi, pois, nestas qualidades aristocráticas que prosseguimos com a reunião.
Tomou a palavra o Conde Caguinchas, coisa que, em condições normais nós teríamos evitado a todo o custo, mas que, dada a nova hierarquia social, se tornava impossível, já que sendo ele Conde e nós apenas cavaleiros não caíria bem, aos olhos do Rei, mandar calar um superior.
Para não variar, e apesar de ímbuido doravante de sangue azul, no usufruto dum Condado ali prás bandas de Alcains, o Caguinchas, emborcou o lenitivo da ordem e, sem mais aquecimentos nem avisos, descarregou um chorrilho de alarvidades e contrasensos, capazes de fazer babar de inveja um estivador bezano em fase quadrupédica.
Eis a súmula (traduzida e seleccionada):
O Caguinchas -aliás, Conde Caguinchas-, tinha descoberto onde se acoitava Bin Laden, o famigerado terrorista. Por uma feliz coincidência, associada a poderes dedutivos invulgares, topara o vilão mais o respectivo covil. Onde satélites, agências, exércitos haviam falhado, o Caguinchas, agora Conde, reclamava vitória. E o mais extraordinário é que o dito facínora, o génio maligno, encontrava-se em Portugal, ou mais precisamente, com toda a exactidão domiciliar, na Rua Morais Soares, nºx, 3º Dtº, à Praça do Chile - Lisboa. Se acrescentarmos o código postal: 1900 Lisboa e o telefone: 2184*****, fica o serviço completo e o banzamento colectivo. Mas o detalhes não ficavam por aqui. Bastava ler o anúncio, que o Conde Caguinchas apresentava como prova eloquente e definitiva:
ASTRÓLOGO * ESPIRITUALISTA * CIENTISTA
MESTRE BAIO
Grande cientista, espiritualista e curandeiro. Descendente de uma antiga e rica família com poderes de magias negra e branca, feitiços dos impérios do mal: Senegal, Gâmbia, Guiné-Conacri. Coordenador dos (Impérios do mal), mesmo ao longo de muitos anos, conhecedor de casos desesperados, ajuda e aconselha qualquer problema, grande ou de difícil solução, com rapidez e sabedoria, em curtos prazos (...) Faz trabalhos à distância. Conhecido por toda a Europa e África., bla-bla-bla e por aí fora..." (o que se seguia não tem muito interesse pois não era citado como matéria de prova.)
-"Este gajo é o Bin Laden! - Garantia o Caguinchas, com a autoridade toda dum conde. - Um raio me parta, se não é! Não, vejam!, vejam com atenção!...'Tá tudo aqui escarrapachado: "Coordenador dos Impérios do mal e trabalha à distância"...É o gajo! Só pode ser mesmo o gajo! chapado e escarrado!...E agora compreende-se com'é qu'aquilo foi feito, os aviões contra as torres e aquele buraco misterioso no Pentágono: Foi magia! Pura magia!...Negra e branca, diz aqui, foda-se!, o gajo é perito nas duas!..."
Mesmo que quisessemos contrapor alguma coisa, o protocolo hierárquico e o olhar severo de D.Afonso Henriques não no-lo permitiriam. Via-se que ele tinha pelo Conde Caguinchas a maior das considerações. De resto, por muito que nos custasse, havia algumas evidências corroborantes, como a questão da coordenação maligna e o trabalho à distância.
Optámos, pois, e a bem da nossa longevidade, por concordar e até rasgar corteses elogios à bela (se bem que rilhafolesca) teoria:
-"Com efeito, Vossa Senhoria!...De facto! Quem diria? Esse energúmeno entre nós!...Mas também, como dizia o poeta, isto não é um país: é um sítio mal frequentado!...Que clarividência a vossa, Conde Caguinchas!..."
Estávamos entretidos nisto, quando, por via da cusquisse proverbial de certos bairros de Lisboa, atraída por rumores e boatos excepcionalmente fundados, eis que desemboca na tasca a respectiva do Batnavó, com uma destas fussas de megera assanhada que só visto, salvo seja, porque nós de a vermos até nos arrepiámos todos e preparámo-nos pró pior.
Vou-vos poupar ao estardalhaço e despautério matrimonial com que a criatura nos brindou e ao marido arredio em especial. Digo-vos que é peixeira num certo mercado e ficamos por aqui.
Mas o pior mesmo foi quando D.Afonso Henriques, sem perceber muito bem todo aquele escabeche, teve a triste ideia de se virar para o Conde Caguinchas e perguntar:
-"Quem é esta plebeia? Que reclama ela?...De que afronta se queixa?...Algum mouro ou castelhano que a violou?!..."
E mais triste ainda foi a resposta que o Caguinchas, feito Conde, teve a infelicidade de lhe dar (nós ainda acenámos, discreta e desesperadamente; mas em vão):
-"É Dona Urraca, vossa esposa, meu senhor!..."
Das duas uma: ou D.Afonso Henriques não reconheceu a esposa; ou tinha contas antigas a saldar. Agora imaginem nove séculos de juros em atraso...
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