sábado, outubro 24, 2009

No Tribunal de Caim

Já que tanto falam em Caim...

«É uma parábola antiga: ‘um dia, Deus, bom pastor, decidiu recuperar a ovelha perdida. Ponderou que estava na hora do céu festejar o regresso do filho pródigo. Já era tempo do remorso e o arrependimento, a provação e o desterro, terem feito o seu trabalho. Chamou Abel e disse-lhe: “Vai procurar teu irmão que eu ostracizei para longe do meu rosto. Perdoa-lhe e diz-lhe que volte, pois é tempo da alegria voltar a céu!” Abel assim fez. Desceu ao Vale da Morte, nos confins da Ignomínia, onde o Rosto de Deus nunca se debruça, e encontrou o irmão, de semblante carregado e esgar meditabundo, sentado num degrau, junto às portas da cidade. Abel exultou e, de olhos radiantes, exclamou: “Ah, meu irmão, que saudades eu já tinha! Alegra-te! É tempo de deixares cair esse luto que te cobre o rosto. O Senhor nosso Pai enviou-me e eu venho para te dizer que te perdoo. Estás perdoado, meu irmão! Agora levanta-te e vem comigo para que o nosso Pai te reveja e o céu celebre o teu regresso!...”
Donde estava, Caim fitou Abel. Fitou-o de muito longe, dum confim gelado e sombrio. Depois falou:
-“Passaram-se muitos anos. Ajuda-me a levantar, que já estou velho e trôpego.”
Abel acudiu, solícito. E quando ele se baixou para amparar o irmão, Caim, com arte refinada, matou-o, agora a sangue frio, pela segunda vez.’’

(...)

E nem sequer é o “homem lobo do homem”, como dizia o hirsuto Marx: é que, ao menos, os lobos têm a ética suficiente para não se comerem uns aos outros. Ao contrário dos homens.
Portanto, tendo em conta tudo o que, desde a História ao quotidiano, parece firmar-se como lógica recorrente e obsessiva, é-nos francamente permitido inferir uma primeira evidência, no que concerne às finalidades cleptocratas: independentemente de quais elas sejam, constata-se, com clareza e antes de tudo, que nunca se alteraram, mantêm-se as mesmas desde épocas imemoráveis. As razões e os motivos da violência – sendo que reside na violência o cerne emblemático da operação cleptocrata –, resistem intactos, incorruptíveis ao tempo e ao uso, quer um quer outro, ininterruptos. Apenas a violência aumentou, desenvolveu-se, exorbitou, numa espiral frenética e orgástica, festim macabro, espécie de cataclismo inesgotável –Antropomoto – em que as sucessivas e cada vez mais destruidoras réplicas outra coisa não repercutem que as ondas, sempre amplificadas, do primeiro golpe. Como se no mundo humano, que a toda a hora se inflama e recrudesce, o fratricídio primordial constituísse, obscuramente, a versão perversa mas efectiva de todos esses princípios originais e activantes que a filosofia ( e a própria ciência) inventariam: do “motor imóvel” Aristotélico ao Big-Bang astrofísico, sem esquecer o “dominó divino” do Mundo-máquina de Descartes. Quer dizer, é como se nesta maquinaria infernal em que, paulatina e inexoravelmente, se vai consubstanciando o mundo, fosse o sangue o combustível energético; e o gesto do fratricídio inicial, congregasse no mesmo acto a infâmia e a demiurgia. Simultaneamente, insinua-se e adivinha-se nesse mesmo mundo a resposta de Caim à maldição divina*:
-“De futuro, serás amaldiçoado pela terra, que, por causa de ti, abriu a boca para beber o sangue do teu irmão. Quando a cultivares, não voltará a dar-te os seus frutos. Serás vagabundo e fugitivo sobre a terra”. – Sentencia-o Deus.
-“Eu, que não tenho lugar, desterrado e filho de despejado, vou construir o meu próprio lugar. Eu, a quem o sangue do meu irmão veda o cultivo da terra, vou cultivar o sangue do meu irmão.” – Parece ter sido, arrepiante, a resposta. Deveríamos entendê-la, pois vivemo-la na sua insofismável actualidade e presença. A raça de Caim é uma raça irascível e belicosa: “Matei um homem porque me feriu, e um rapaz porque me pisou –se Caim foi vingado sete vezes, Lamec sê-lo-á setenta vezes sete.”, garante e prescreve o seu quadrineto. Nem o tempo, nem a história atenuarão a violência, ou abrandarão a cólera e o rancor.
De resto, como já anteriormente explicámos, o mito é intemporal: não refere propriamente um passado, feito e acabado, mas profere, veladamente, um ciclo intempestivo, perene. Aquilo que uma cronovisão botiqueira como a actual chama de “presente” e “futuro” não está imune nem impermeável ao mito. Longe disso. Por muitas barreiras e vedações que se projectem e erijam entre os momentos, na forma de horas, dias, meses, anos, gerações, séculos, por muito que se tente manter os seres ostracizados e aprisionados nessas celas estanques, nem uns nem outros –os momentos e os seres –, são domesticáveis ou encurraláveis a esse ponto. Tais baluartes e estrebarias não passam de ficções grosseiras e aleijadas, convenções utilitárias e mercantis que em nada revelam de autêntico. Manipulam, manobram, manifestam, em suma, ajustam-se e adaptam-se à “mão”, mas não ao espírito. O que quer que está, e sempre esteve, para lá desses embustes, provavelmente flui, sem intervalos nem retalhos, indiferente ao “antes” e ao “depois”, ao “agora” ou “antigamente”. Quiçá, na profundeza, o trajecto de cada existência, mais que um sucesso separado e autónomo, antes traduz um re-viver eterno, uma restauração do ser enquanto apuramento, em suma: uma analépsia pela catarse. Essa seria a dimensão trágica da existência, que os antigos percebiam claramente. E não podia podia estar mais longínqua da actual, tecnoeficiente, cinemática, onde a amnésia e a hibridação imperam. Não obstante, quem olhar sem segundas intenções, lobrigará que detrás dum pseudo-progresso em permanente remodelação e reinvenção é, ainda e sempre, Caim que opera. Apenas a multiplicação se altera, pela mera aceleração: “setenta vezes sete”, ou “setecentos vezes setenta”, ou “sete mil vezes setecentos”, a operação nunca mais pára, numa exorbitância sem fim, numa conta sempre a levedar, com juros e moras. Porque tanto quanto irascível e belicosa, a raça de Caim é uma raça de cobradores. No acto de matar e roubar é também uma forma de indemnização que se consuma: a desforra duma ofensa, prejuízo, carência ou inferioridade. Da mesma forma que uma misofratria que se resolve. Daí ao Blobglob, quintessência daquele homem que não deve nada à vida e ao cosmos, mas a quem tudo e todos devem, com hipoteca e prémio, vai um caminho lógico e uma linhagem insigne.
Essa convicção sublime, também ela incorruptível à experiência e aos tempos, gera frutos providenciais. O primeiro deles é de índole psicológica: o cleptomaníaco (independentemente do grau hierárquico que ocupa na cleptocracia) convence-se que não rouba, apenas cobra. A sua parte, entretanto, deixa de ser a “parte confiada pelo destino” para passar a ser a quantidade que ele tem capacidade de cobrar. Quanto ao alcance e regras da cobrança, são definidos através de contratos, onde ficam consignados a força e a justificação de cada qual. Em suma: estabelece-se o quinhão respectivo. Aparentemente, o contrato estipula a força; mas, efectivamente, é na verdade o contrário que se passa. A evolução histórica comprova-o e concretiza-o.»

- in "O Tratado da Besta" (Helionecrose e Hegemonia - Iª Parte: Ocídio e Odisseia)


Caim construiu cidades para nelas cultivar Tribunais; e fez da sua própria alma uma cidade, que, ano após ano, com energia de formiga e astúcias de aranha, labirinta e fortifica. Nesses tribunais, - no açougue que funciona no rés-do-chão, mais precisamente-, toda a carnificina tem como fulcral intuito o mero ensaio para um único, exclusivo e imarcescível réu: Deus.

"Se, no primeiro dia, expulsaste o meu pai do Teu Paraíso, eu, no último, hei-de expulsar-te do meu Inferno!"
Caim não esquece. Nem perdoa.

terça-feira, outubro 20, 2009

Super-desnível

E ainda dizem que não prestamos, que somos uns pelintras!...

Pois vamos em 5º, a nível mundial, e apenas suplantados por Hong-Kong, Singapura e os dois Estados Unidos (o giga e o nano). Escandinabos, roei-vos de inveja!

Deve ser por isso que temos cada vez menos nível: estamos a apostar tudo no super-desnível. E diabos nos levem se não estamos a conseguir, com uma perna às costas! Já somos dos melhores, entre os piores.

Recapitulemos então os três famosos Dês da cegada abrileira: Descolonização, foi a debandada que se viu; Democracia, é o delapidanço que se vê; Desenvolvimento, há-de ainda desmesurar-se no desnível - o super-desnível - que se verá.

Eles vivem.

terça-feira, outubro 13, 2009

Pornocracia global

«Goldman Sachs set to announce record $23billion bonus pot».


O Império do obsceno. Quaisquer outras palavras serão puras redundâncias destas quatro.

Ética republicana

Um caso mais que típico: emblemático. E endémico.

É por isso, e tantas outras coisas, que sempre que oiço alguém falar em "ética republicana", tanto quanto ir a correr buscar a espingarda, reúno a certeza plena de estar na presença solene dum real filho da puta. Raramente falha, a dedução.

sexta-feira, outubro 09, 2009

Pedagogias evolutivas

É claro que tem havido evolução. Serei sempre o último a negá-lo. Na educação, por exemplo, ela tem sido mais que evidente: a máquina até há uns anitos atrás produzia simples chouriços; agora, já produz toda em vasta diversidade de enchidos psicopatas.
Basta atentar nas chamadas "praxes".

Pelo ralo

Parece que esta choldra hodierna que responde pelo inverosímil nome de "portugueses" é composta por duas classes substanciais: os pobres envergonhados e os ricos desavergonhados. E o mais triste e rastejabundo de tudo isso é que a principal vergonha que aflige os primeiros, ao que consta, é não serem iguais aos segundos.

segunda-feira, outubro 05, 2009

Da República



«O observador imparcial chega a uma conclusão inevitável: o país estaria preparado para a anarquia; para a república é que não estava. Grandes são as virtudes de coesão nacional e de brandura particular do povo português para que essa anarquia que está nas almas não tenha nunca verdadeiramente transbordado para as coisas!
Bandidos da pior espécie (muitas vezes, pessoalmente, bons rapazes e bons amigos - porque estas contradições, que aliás o não são, existem na vida), gatunos com o seu quanto de ideal verdadeiro, anarquistas-natos com grandes patriotismos íntimos - de tudo isto vimos na açorda falsa que se seguiu à implantação do regimen a que, por contraste com a monarquia que o precedera, se decidiu chamar República.
A monarquia havia abusado das ditaduras; os republicanos passaram a legislar em ditadura, fazendo em ditadura as suas leis mais importantes, e nunca as submetendo a cortes constituintes, ou a qualquer espécie de cortes. A lei do divórcio, as leis da família, a lei da separação da Igreja e do Estado - todas foram decretos ditatoriais, todas permanecem hoje, e ainda, decretos ditatoriais.
A monarquia havia desperdiçado, estúpida e imoralmente, os dinheiros públicos. O país, disse Dias Ferreira, era governado por quadrilhas de ladrões. E a república que veio multiplicou por qualquer coisa - concedamos generosamente que foi só por dois (e basta) - os escândalos financeiros da monarquia.
A monarquia, desagregando a Nação, e não saindo espontaneamente, criara um estado revolucionário. A república veio e criou dois ou três estados revolucionários. No tempo da monarquia, estava ela, a monarquia, de um lado; do outro estavam, juntos, de simples republicanos a anarquistas, os revolucionários todos. Sobrevinda a república, passaram a ser os republicanos revolucionários entre si, e os monárquicos depostos passaram a ser revolucionários também. A monarquia não conseguira resolver o problema da ordem; a república instituiu a desordem múltipla.
É alguém capaz de indicar um benefício, por leve que seja, que nos tenha advindo da proclamação da República? Não melhorámos em admninistração financeira, não melhorámos em administração geral, não temos mais paz, não temos sequer mais liberdade. Na monarquia era possível insultar por escrito impresso o rei; na república não era possível, porque era perigoso, insultar até verbalmente o sr. Afonso Costa.
O sociólogo pode reconhecer que a vinda da república teve a vantagem de anarquizar o país, de o encher de intranquilidade permanente, e estas cousas podem designar-se como vantagens porque, quebrando a estagnação, podem preparar qualquer reacção que produza uma cousa mais alta e melhor. Mas nem os republicanos pretendiam este resultado nem ele pode surgir senão como reacção contra eles.
E o regimen está, na verdade, expresso naquele ignóbil trapo que, imposto por uma reduzidíssima minoria de esfarrapados mentais, nos serve de bandeira nacional - trapo contrário à heráldica e à estética, porque duas cores se justapõem sem intervenção de um metal e porque é a mais feia coisa que se pode inventar em cor. Está ali contudo a alma do republicanismo português - o encarnado do sangue que derramaram e fizeram derramar, o verde da erva de que, por direito natural, devem alimentar-se.
Este regimen é uma conspurcação espiritual. A monarquia, ainda que má, tem ao menos de seu o ser decorativa. Será pouco socialmente, será nada, nacionalmente. Mas é alguma coisa em comparação com o nada absoluto que a república veio a ser.»

- Fernando Pessoa, "Da República"

domingo, outubro 04, 2009

Viva o REI!

Diz o Rui Albuquerque (um dos poucos liberais vertebrados cá da paróquia) que "algumas almas caridosas penam por aí pedindo o fim da Terceira República e o advento de uma Quarta".
Devo informar que não pertenço a tal bando de almas mais depenadas que penadas (ou implumes, rememorando Diógenes). Na verdade, não sou pelo fim da Terceira República: sou pelo fim da República, toda ela, com os números todos que inventem e duma vez por todas.
É que se a coisa funciona a pedido, então, ao menos, não sejamos pobres no pedir. Já que no resto, sobretudo na coerência, na verticalidade e na autenticidade, somos, regra geral, duma indigência atroz.

A Bloga-fera


Legenda: Blogger partidário surpreendido em flagrante despejo.

PS (ou PSD): onde reza partidário, o republicano subentende-se.