domingo, agosto 10, 2008

Babelúrgicos pedagogos

«À concepção do trabalho-penitência substitui-se a ideia do trabalho como meio positivo de salvação. Como não sentir, por detrás, deste impulso de um novo mundo monástico, a pressão das novas categorias profissionais - mercadores, artesãos, trabalhadores desejosos de encontrarem, no plano religioso, a justificação da sua actividade, da sua vocação, a afirmação da sua dignidade e a garantia da sua salvação, não apesar da sua profissão, mas precisamente através dessa mesma profissão? A projecção destas aspirações no universo hagiográfico é, ainda aqui, esclarecedora. Em princípios do século XIII, o tempo dos santos-trabalhadores está já em vias de ceder o lugar ao tempo dos trabalhadores-santos.
Há mais. Esta nova espiritualidade do trabalho, como é normal, tende a enraizar-se numa teologia do trabalho. Deveremos procurar o esboço desta teologia nos comentários do Génesis, comentários que se esforçam por demonstrar que o trabalho tem as suas raízes positivas em Deus, porque: 1.º a obra do Criador (e haveria que seguir o desenvolvimento do tema do summus artifex ou summus opifex) foi um verdadeiro trabalho - trabalho superior, sublimado, criação, mas com todas as suas penosas consequências: um labor de que Deus teve de descansar ao sétimo dia. Deus foi o primeiro trabalhador. 2.º O trabalho, um certo trabalho (a definir no sentido de uma manutenção) havia sido dado ao homem, a Adão, como vocação antes da queda, pois Deus havia-o posto no Paraíso para que o trabalhasse e o conservasse (Gen. 2, 15-16). Antes do trabalho-penitência, consequência do pecado e da queda, houve um trabalho feliz, bendito por Deus, e o trabalho terrestre conservou algo do trabalho paradisíaco anterior à queda.
Não é de admirar que, nesta conjuntura, o esquema tripartido da sociedade deixe de estar adaptado às realidades sociais e mentais. [...]
Há, sem dúvida - e é até capital para que as novas categorias socio-profissionais recebam direito à vocação -, permanência e mesmo reforço da concepção unitária da sociedade cristã. Porém, o corpus cristão estrutura-se - e esta estruturação faz-se a partir da função, da profissão, do mester. O corpus já não se compõe de ordens, como na sociedade sacra da Alta Idade Média, mas sim de estados, entre os quais pode haver, e há, efectivamente, uma hierarquia mas uma hierarquia horizontal, não vertical.»

- Jacques Le Goff, "Para um novo conceito de Idade Média"


Atente-se como a transformação do trabalho - de ocupação indigna, típica de escravos ou penitentes, na Antiguidade e Alta Idade Média - em via de salvação, no século XII, antecipa toda uma série de romarias hagiofóricas decorrentes, desde os protestantismos aos marxismos, passando pelos positivismos, liberalismos, cientismos e tecnolatrias afins.
Nesta fase inicial, o trabalho tornar-se-á possibilidade de salvação; mas posteriormente, sobretudo no pós-revolução francesa, devirá condição de liberdade. Nisso, aliás, e tão curiosa como significativamente, capitalistas, comunistas e nazis concordarão: "O trabalho liberta".
Entretanto, à boleia do trabalho, avança o dinheiro. Como Le Goff, na mesma obra, expõe eloquentemente:
«Antes do século XIII, no Ocidente Bárbaro, todas as actividades remuneradas eram atingidas pelo opróbio que se aplicava às categorias ditas mercenárias. Era indigno tudo o que se pagava, tudo o que se comprava. A honra ou o dever definiam-se por serviços, de cima para baixo e reciprocamente. O dinheiro, economicamente marginal, era-o também do ponto de vista moral. A sociedade cristã da Alta Idade Média reforçava-se nesta crença ao ver o sector monetário "infestado" de judeus. A comercialização e o salariato continuamente em progressão transformam os valores.
Duas categorias, dois mesteres conduzem esta transformação.
Primeiramente, os professores. Antes do século XII, a ciência e a cultura eram apanágio de clérigos que a adquirem e a dispensam parcimoniosamente, sem gasto de dinheiro. Escolas monásticas ou episcopais formam disciplinas para o opus Dei, que não se mercadeja.
Com as escolas urbanas do século XII, arrastadas pelo desenvolvimento das cidades, animadas por mestres que devem, tal como os alunos, encontrar maneira de viver com o que têm, as condições materiais, sociais e espirituais do saber são profundamente transformadas. Este é o sentido do debate que a partir de meados do século XII se instaura em volta de uma fórmula: a ciência é um dom de Deus e não pode por isso ser vendida. Pouco importa aqui saber que possibilidades de remuneração se oferecem aos novos mestres e que soluções se encontrarão: salário público, remuneração dos clientes, isto é, dos estudantes, benefícios eclesiásticos. O essencial está em que à pergunta Os mestres podem licitamente receber dinheiro dos estudantes?, os manuais de confessores, eco da prática e da opinião, respondem pela afirmativa.
Paralelamente, levanta-se a questão dos mercadores, no domínio do crédito, onde a expansão da economia monetária afasta, para segundo plano, os judeus, confinados a operações de empréstimos de importância restrita. Há, a partir de então, o problema da usura cristã. O juro, sem o qual a economia monetária pré-capitalista não poderia desenvolver-se, supõe, em termos escolásticos, uma operação maldita até então: a venda do tempo. Exactamente simétrico da comercialização da ciência, põe-se o problema da comercialização do tempo, aos quais se opõe uma mesma tradição, uma mesma fórmula: O tempo é um dom de Deus e não pode por isso ser vendido. E, ainda neste caso, acompanhada sem dúvida de precauções, duma casuística restritiva, dá-se uma resposta favorável, que encontramos nos manuais de confessores.»

O intelectual eclode, assim, como comerciante da ciência, mercador de ideias, profissional glossúrgico. E até aos dias de hoje poderemos acusá-lo de tudo excepto de infidelidade à sua matriz.
Em pormenor, de como se constitui, não só em inversão, mas sobremaneira em aversão ao filósofo antigo, tentaremos dilucidar no próximo postal.

4 comentários:

zazie disse...

Que grande tema que tu agarraste.

Anónimo disse...

A Europa urbanizou-se. Que chatice. Tanto trabalho, laboriosamente desenvolvido pelos Francos e pelos Visigodos, e ao fim de 800 anos lá vieram eles com o raio das cidades outras vez...
...ainda por cima vieram com as Universidades, essas criações aterradoras da Igreja Católica, com os seus estudos de leis e teologia...

Anónimo disse...

Para grandes males, grandes ogivas nucleares.

Anónimo disse...

Concordando com tudo , só duas observações :
Deus não trabalhou , sarna com gosto não pica ,e a não ser que estivesse a prestar provas na escola dos deuses e criar um "mundo" fosse um dos requisitos para passar , e a essa tarefa fosse obrigado , esteve foi na brincadeira. Brincadeira perigosa , pois isto não correu lá muito bem , mas pronto. A cadeia alimentar , então , é de fugir , de tão violenta , e foi o que nos obrigou ao trabalho , até.

E , Dragão , ele ainda há pessoas que acham que trabalho é próprio de classes baixas.

PS ) agora que o rei da noruega andou por cá , gostei muito , mas muito , de saber que um operário numa qualquer indústria ganha à volta de 2500 euros e um catedrático 3500. 1000 euros de diferença , mais nada.
E gostei de saber porquê , se há coisa que não compreendo , é que profissões indispensáveis à vida sejam , na maior parte dos países , muitíssimo pior remuneradas que outras , cuja necessidade não é coisa que necessite , por exemplo , gestor de banco ( sobretudo gestor de banco português , com especial relevância para Banco de Portugal)ou até político. Ou até cientista que não saiba fazer uma cabana e plantar uns legumes , ou curar uma ferida. E que dependa de subsidios do estado ou de uma qualquer multinacional para realizar estudos que agradem ao patrão.